Enterre seus Mortos (2024)

Morte e vida apocalíptica

título original (ano)
Enterre seus Mortos (2024)
país
Brasil
gênero
Fantasia, Terror, Ficção Científica
duração
128 minutos
direção
Marco Dutra
elenco
Selton Mello, Marjorie Estiano, Danilo Grangheia, Betty Faria, Maria Manoella, Chao Chen, Vittória Seixas
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Enterre seus Mortos é um filme muito particular. Ele parte de um princípio fabular, embora preserve um pé no naturalismo. Edgar Wilson (Selton Mello) é um funcionário dedicado no ORAM — Órgão de Recolhimento de Animais Mortos. Quando alguém atropela um cavalo ou javaporco na estrada, ele se encarrega da remoção. Por isso, diante de um acidente com a vítima ainda ferida, clamando por socorro no interior do carro, o herói responde: “Eu vim pelo cavalo”. Recolhe o bicho e deixa o humano sangrando no local.

Ora, o motorista, coberto de sangue, reclama a necessidade urgente de pegar um foguete e fugir deste planeta. Alguns metros atrás do veículo destruído, homens de branco rezam, pronunciando palavras incompreensíveis. O herói se desloca através de um mundo de caos, embora ele mesmo corresponda ao realismo do funcionário-padrão, eficiente, pragmático. O sujeito nunca sorri nem chora, e une-se à namorada Nete (Marjorie Estiano) por comodidade. Quando esta lhe pergunta o motivo de sua atração, ele argumenta que seria pelo “coração grande”. A mulher possui uma má formação congênita.

As coisas apenas se complicam dali em diante. A partir do livro homônimo de Ana Paula Maia, o diretor Marco Dutra promove uma combinação única entre drama pós-apocalíptico, filme de possessão demoníaca, terror com monstros e comédia satírica. Isso significa que convivem, lado a lado, seitas baseadas em chás alucinógenos, um melhor amigo padre (Danilo Grangheia) narrando seu histórico de exorcismos, uma ilha de isolamento para crianças infectadas com a síndrome misteriosa, a venda ilegal de cadáveres e um sujeito que expressa seu caráter letal via sonambulismo.

Um filme apaixonado pelo artifício, para o qual o estranhamento constitui meio e finalidade. Não há conciliação, amor romântico nem valores familiares capazes de salvar o dia e garantir alguma paz de espírito ao espectador.

O roteiro se estrutura em sete partes — uma “fábula do apocalipse em sete capítulos”, conforme atesta o subtítulo. Parte-se do número 7 ao 1, sugerindo a contagem regressiva. No entanto, os acontecimentos não necessariamente constituem a causa ou consequência dos anteriores. A trama se bifurca, adota tangentes e saídas estapafúrdias, ao invés de se desenvolver linearmente. Trata-se de uma escolha voluntária, é claro: o projeto traduz tal liberdade de construção que se assemelha a um luxuoso brainstorming, no qual ideias custosas e improváveis se materializam.

Quer uma máquina gigante de moer cavalos (até se descobrir um cavalinho inteiro dentro da égua grávida)? Claro, fazemos. Uma montanha tomada por milhares de ovelhas mortas? Sim, aqui está. Um chá avermelhado com partículas brilhosas, a sorver durante um ritual espiritual? Sem problema. Enterre seus Mortos surpreende pela própria existência da obra, espécie de exercício livre de criatividade e inconsequência. Estamos acostumados a tantas obras convencionais, desesperadas para agradar o espectador, que este OVNI em termos de linguagem e estrutura possui um valor particular.

Dutra sempre gostou de desafiar o espectador com a fusão de gêneros, as escolhas inusitadas de elenco, e os protagonistas de difícil identificação. Agora, ele leva estes princípios ao paroxismo, colocando em primeiro plano um sujeito-máquina, indivíduo desprovido de empatia ou de afeto real. Devemos torcer por ele? Pelo padre hardcore com quem ele divide o quarto? Pela namorada sorridente, vislumbrando um futuro juntos? Ou talvez por esta profetisa do apocalipse, papel cuidadosamente entregue a Gilda Nomacce, grande nome do cinema de horror, que dispara, na rádio: “Quem não tá mal hoje em dia, né?”.

 

A exemplo de toda obra “de gênero” — seja terror, fantasia, ficção científica, ou a soma de todos os anteriores, como neste caso —, o longa-metragem se afasta do real para melhor comentá-lo. Distanciamo-nos do mundo à sua imagem e semelhança para enxergar no individualismo destas relações, no fundamentalismo religioso da avó (Betty Faria) e da namorada, uma crônica do Brasil contemporâneo. A síndrome, que atinge sobretudo as crianças, torna-se o avesso perfeito da Covid-19, mal do qual as crianças foram poupadas. No entanto, a ficção supõe nosso egoísmo e incapacidade de funcionar coletivamente no contexto do caos. Seguimos somente interesses próprios — e os demais, que se virem. “Eu vim pelo cavalo”.

Para os atores, esta representa uma oportunidade de brincar fora de registros habituais. Selton Mello retoma os personagens ousados e pouco agradáveis, que fazia com mais frequência em tempos de O Cheiro do Ralo (2006). Ele compõe uma mistura de robotização e infantilização (caso das cenas noturnas), além de algumas transformações surpreendentes na conclusão. Danilo Grangheia compõe ao mesmo tempo o padre, o caubói, o colega de trabalho, o roqueiro. Marjorie Estiano serve tanto como namorada gentil quanto desvio do protótipo da “mocinha” das novelas, excessivamente ingênua e crédula. O filme se diverte em subverter e recombinar arquétipos tidos como incompatíveis.

Por trás das câmeras, a equipe brinca com igual furor. A direção de fotografia de Rui Poças imagina as cores rosadas de um céu apocalíptico, e alterna os planos próximos nos rostos expressivos com grandes cenas valorizando o cenário decadente. A direção sonora de Douglas Vianna aposta na multiplicação dos ruídos e trilhas perturbadores, enquanto o trabalho de direção de arte de Ana Paula Cardoso aposta em escolhas que chamem atenção a si próprias: a peruca da atriz principal, os inúmeros cadáveres de animais, os corpos mumificados, os olhinhos de brinquedo na recepção do centro de pesquisa.

Em outras palavras, temos um filme apaixonado pelo artifício, para o qual o estranhamento constitui meio e finalidade. Quando os créditos começaram a subir, alguém gritou, dentro da sala de cinema: “Que grande bosta!”, despertando alguns sorrisos ao redor. Fora da sala, anônimos que haviam se sentado lado a lado comentavam a estranheza daquilo tudo. Diziam que nada tinha sentido, que os rumos da narrativa eram absurdos. Ora, vale destacar a preciosidade de pessoas parando para discutir o filme. Ficaram incomodadas, sentiram a necessidade de conversar, de interrogar, de compartilhar. Quantos filmes promovem a mesma sensação, logo após a subida dos créditos?

Resta a impressão tão interessante quanto incômoda que Enterre seus Mortos não foi concebido, exatamente, para agradar o espectador. Ao imaginar um mundo onde se vendem cadáveres de humanos e de bichos, onde nosso referencial de ponto de vista pertence a um sujeito sem sentimentos, e que não nos oferece nenhum tipo de recompensa emocional na conclusão, Dutra dispensa o princípio do prazer baseado na previsibilidade. Dramas pós-apocalípticos costumam se encerrar com a promessa de que, em breve, a humanidade se recuperará do baque. Filmes de invasão de monstros se concluem, na maioria, com a vitória contra o inimigo e a salvação dos protagonistas. 

Ora, nada disso acontece aqui. Não há conciliação, amor romântico nem valores familiares capazes de salvar o dia e garantir alguma paz de espírito ao espectador. O intuito parece ser, precisamente, de provocá-lo quanto a estas expectativas. Em sua estrutura caótica, Dutra oferece um feel bad movie. A obra proporciona uma iniciativa admirável tanto pelas escolhas que faz, quanto por tudo aquilo que não faz. Um objeto estranho, cujo valor se encontra no fato de utilizar os fartos recursos de produção (os efeitos visuais competentes, o grande elenco) para se posicionar contra os pressupostos das superproduções. Seja pela singularidade ou pela picardia, conquista a nossa atenção.

Enterre seus Mortos (2024)
6
Nota 6/10

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