Há 31 anos, Roberto Chaves vive em Paris. O dançarino se estabeleceu na Europa, onde se apresenta no mesmo cabaré, dançando e vestindo-se com roupas coloridas para entreter os clientes. Em paralelo, leva de sua Bahia natal a cultura do candomblé, que implementa junto aos costumes franceses. Após bastante luta, conseguiu a autorização da igreja Madeleine para realizar atividades afrodiaspóricas no interior da igreja católica, enquanto realiza o ritual da lavagem dos degraus — adaptando uma prática que, segundo os religiosos locais, já existia naquela instituição.
Compreende-se bem os motivos que levam a cineasta Liliane Mutti a dedicar uma obra ao artista. Ele pode representar o encontro entre formas muito distintas de religiosidade, de geografia e cultura, além de encarnar uma identidade queer pouco discutida em terras brasileiras. O homem negro, bissexual, performático e adepto de religiões politeístas reflete uma subjetividade plural, que raramente representa o Brasil contemporâneo para os demais países. A existência deste homem em solo estrangeiro constitui um posicionamento político em si.
De certo modo, a equipe efetua um percurso esperado para uma obra do gênero. Viaja tanto a Santo Amaro, cidade natal do protagonista, quanto à França. Observa as apresentações de Robertinho, como é chamado, durante a noite parisiense, mas também o entrevista em seu pequeno apartamento na periferia. “[Espero] que a minha história sirva de exemplo para muitas crianças”, ele verbaliza, transmitindo seu objetivo pessoal com esta empreitada. Para todos os envolvidos, trata-se de uma história de sucesso que convém destacar.
O filme é prejudicado pelas escolhas estéticas e de linguagem. Madeleine em Paris também se mostra temeroso em relação aos temas controversos que pretende abordar.
No entanto, o filme é prejudicado pelas escolhas estéticas e de linguagem. Em primeiro lugar, toda a captação ocorre com uma câmera digital de baixa qualidade, aparentemente conduzida na mão, sem nenhuma forma de estabilização. Isso resulta numa textura próxima do caseiro, amador, de resolução ínfima, e inesperada para uma obra visando exibição na grande tela do cinema. As imagens são “lavadas”, ou seja, de baixíssimo contraste, com pouca definição de luzes, sombras, cores e profundidade de campo. Os esplendores do candomblé e do cabaré se perdem nas captações acinzentadas.
Além disso, o olhar se mostra tão disperso quanto o dispositivo. A câmera treme de um lado ao outro, sem saber ao certo para onde olhar, e por qual duração. Está frequentemente posicionada de maneira que não valoriza nem os espaços, nem os personagens. Na casa noturna, Roberto é visto muito à distância, perdido entre mesas, como se os criadores não tivessem obtido a autorização para acompanhá-lo de perto. Nas cenas coletivas de reuniões associativas e festas pela rua, o olhar desliza de um lado para o outro, indeciso, perdido.
Em outras palavras, a direção não se mostra preparada para lidar com o acaso — algo particularmente delicado para um projeto que se presta a seguir interações espontâneas. Quando a lavagem da escadaria, mencionada dezenas de vezes, enfim se materializa (durante míseros minutos, na conclusão), a câmera se encontra atrás das figuras religiosas, sem saber ao certo como se infiltrar entre os corpos e encontrar um ângulo adequado para registrar o acontecimento. As cenas no camarim, e mesmo as conversas dentro de casa, se beneficiariam do mínimo cuidado com a luz.
O som, pelo menos, possui melhor senso de atenção e hierarquia — em especial a narração em off do personagem principal, conduzindo a trama. De fato, as falas cotidianas se perdem com facilidade, e a mixagem entre vozes e ruídos nem sempre funciona a contento. Mesmo assim, as pistas sonoras se mostram mais “limpas”, elegantes e profissionais do que o material imagético destinado a acompanhá-la. De certo modo, o amadorismo dos movimentos de câmera “flicando”, e de cenas completamente fora de foco (o testemunho do amigo de Roberto) se atenuam graças à clareza da linguagem sonora.
Infelizmente, Madeleine em Paris também se mostra temeroso em relação aos temas controversos que pretende abordar. Prefere se focar na fala pretensamente amigável deste padre, ao invés de detalhar as inúmeras recusas recebidas anteriormente pelo protagonista, quando buscou efetuar a lavagem em outros espaços, a exemplo do Sacre Coeur e da catedral de Notre Dame. De que maneira os membros da comunidade brasileira foram recebidos? Com quais termos e justificativas formais foram recusados? Os membros da associação apenas consentiram e foram embora? Faltam informações a respeito, para contextualizar a proposta política do personagem.
Mesmo o acolhedor líder da Madeleine reclama que o grupo de brasileiros se manifesta em volume “alto demais para nossos ouvidos ocidentais”. Ora, onde se situa o Brasil, para ele? Este misto de preconceito e xenofobia também é descartado pela narrativa, que evita problematizá-lo. Robertinho comenta, vagamente, que os franceses não gostam de misturar cultura e religião. Ora, o tema da laicidade à francesa (que não permite a manifestação pública de nenhuma religião, no intuito de tratá-las em igualdade) possui enorme complexidade, que teria sido fundamental ao debate deste documentário. O filme nunca mergulha nestas questões.
Em paralelo, o ícone queer comenta seus amores por mulheres e mal fala daqueles por homens, em um projeto que não captura uma única demonstração de afeto romântico por parte do imigrante, em relação a quem quer que seja. A abordagem resulta superficial e pudica, para não dizer envergonhada. O homem representa diversos segmentos sociais e grupos culturais que jamais são investigados em suas contradições e complexidades. Como Roberto Chaves conseguiu sua cidadania? Como isso alterou sua vida na França? Sente-se francês, parte daquele país? Como enxerga a religiosidade por lá? Ele mantém contato com a família de Caetano e Betânia? Com Carlinhos Brown?
Resta uma iniciativa muito mais instigante enquanto proposta do que realização. O documentário estima que a generosidade desta conversa, e o temperamento caloroso do protagonista, dispensem um cuidado maior com a linguagem básica do cinema: som e imagem; tempo e espaço; discurso e ponto de vista. Até porque, quando se deseja homenagear alguém de quem se gosta muito (e o filme possui evidente ternura pelo artista), procura-se uma estética à altura da importância da pessoa biografada. Entretanto, a estrutura adotada pelo documentário não constitui uma maneira particularmente elogiosa de mostrá-lo ao público.