Tár (2022)

O retorno do recalcado

título original (ano)
Tár (2022)
país
EUA
gênero
Drama
duração
158 minutos
direção
Todd Field
elenco
Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Sidney Lemmon, Mark Strong, Alec Baldwin, Sylvia Flote, Jessica Hansen, Allan Corduner, Julian Glover, Fabian Dirr, Peter Hering, Han Lai
visto em
Cinemas

Este filme efetua um curioso percurso junto ao espectador. Pode-se dizer que ele possua uma partitura estranha, ou que represente um espetáculo de rumos inesperados. A cena inicial se abre com a apresentação de Lydia Tár (Cate Blanchett) num debate com o público. Ela é descrita pelo mediador como um prodígio da música, uma profunda conhecedora das artes. Desde o princípio, somos convidados a admirá-la — pelo menos, numa esfera intelectual.

No entanto, existe algo estranho nesta sequência. Apesar das falas coerentes, da bela oratória e do evidente conhecimento a respeito da história da música clássica, a maestrina se mostra desconfortável com as perguntas. No fundo da plateia, a câmera reforça a imagem de uma cabeça ruiva, de costas, observando-a. Quem seria? A direção de fotografia opta por tons subexpostos, “queimados”, além de uma luz que prefere ocultar a revelar. Há algum elemento sinistro, grave, e potencialmente perigoso.

A abertura resume muito bem o procedimento adotado pelo diretor e roteirista Todd Field. Ele parte do auge da intelectualidade pomposa, e um tanto arrogante, para gradativamente revelar a humanidade por trás dos títulos, prêmios e reverências à protagonista. Ela deixa de ser um ícone para se revelar uma pessoa “comum”, ou ao menos humanizada em suas falhas. Cai a máscara de Tár, o gênio, para descobrirmos então uma figura pequena, moralmente condenável, talvez criminosa. Iniciando sua jornada pela razão, o projeto começa a abandoná-la, cena após cena, rumo à emoção.

O espectador é convidado a embarcar num percurso semelhante, da certeza (fatos, dados e números da carreira de Tár) ao desconhecido, o suspense, os pesadelos e devaneios de uma mulher desconcertada e desconcertante. Seremos questionados por nossa adesão a esta mulher: a partir de qual momento o público rompe sua identificação com a prestigiosa heroína? Na asfixiante aula de música na Julliard? Na escolha da nova violoncelista de sua orquestra, movida por critérios questionáveis? Na relação passivo-agressiva com a assistente, Francesca (Noémie Merlant)? A princípio, ela controla o discurso por completo. Na cena final, sua palavra e suas vontades não valerão mais nada.

O diretor consegue olhar as pessoas, os sistemas e processos socioculturais com tanto interesse quanto distanciamento. Aí reside a beleza estética e intelectual deste misterioso filme.

Teria sido simples efetuar uma associação entre talento e virtude moral. Parte considerável das biografias musicais acredita que artistas excepcionais também seriam pessoas admiráveis. Suas falhas, quando consideradas, servem para apontar o fardo de ser grandioso num mundo de indivíduos comuns, ou as derivas de “amar demais”, “sentir mais que os outros”, “enxergar o que ninguém mais vê”. Existe uma tendência perversa a romantizar o comportamento tóxico de astros e criadores. 

Ora, em sua biografia fictícia, Field procura romper com esta tradição. Ele nem adere completamente a Tár, nem rompe com a mulher para julgá-la moralmente. A questão do ponto de vista se torna central: estamos próximos do corpo e do rosto da mulher, que domina a maioria das cenas. No entanto, desconhecemos sua psique e suas motivações. Ela preserva a aura de mistério e implausibilidade, porque o cineasta nunca convida o público a enxergar o mundo pelos olhos da heroína. Nós a vemos de fora, com certa estranheza e aspecto crítico. Somos todos aquela cabeça ruiva, de costas, admirando Tár do fundo da plateia.

Isso permite nos posicionar junto aos colaboradores, amantes e mesmo vítimas da maestrina. O roteiro desenvolve complexos laços de poder e manipulação entre mulheres. A heroína, lésbica assumida, vive com a esposa Sharon (Nina Hoss); explora a assistente Francesca, claramente apaixonada por ela; enquanto se apaixona pela novata da orquestra, Olga (Sophie Kauer). Além delas, há Krista Taylor, a presença invisível, que descobrimos ser, adiante, a tal cabeça ruiva no fundo da plateia. 

Muito gira em torno desta mulher ausente, fantasmática, que obtém sua revanche simbólica apesar de ausente em imagens. Taylor é vítima e carrasca, algoz e justiceira, tendo participado, no passado, do mesmo jogo de sedução e hierarquia profissional pela qual passaram todas as outras personagens femininas. “A única mulher com quem você não tem uma relação de trabalho está dormindo no quarto ao lado”, acusa Sharon, a respeito da filha do casal, que nunca chama nenhuma das duas de mãe. 

É impressionante a complexidade de Tár e destas figuras-satélites. Field sugere relações que ocorreram no passado e jamais se materializam em imagens (o filme dispensa flashbacks). Compreendemos suas motivações, às vezes ambíguas, entre o medo e o desejo, entre o erotismo e o suspense de um possível ataque. A maestrina espia por baixo das cabines dos banheiros públicos num misto de gozo erótico e possível medo. Os ruídos que a perturbam em algum cômodo distante e indefinido (até o terço final da trama, pelo menos) provêm de outras mulheres, além da imagem de bichos de pelúcia e de um possível brinquedo infantil. 

Tár assombra suas inferiores hierárquicas tanto quanto se vê assombrada por estas figuras maternas (a mãe simbólica que ela precisa ajudar, no apartamento vizinho, e contra a qual se rebela de maneira pueril), filiais (a filha e as meninas mais novas que a admiram) e profissionais (as demais mulheres músicas que competem com ela). A heroína ainda escuta o grito distante de uma mulher na floresta, que talvez esteja sendo atacada. Deveria salvá-la? Conforme o longa-metragem abraça o suspense, ficando muito próximo do terror nas cenas noturnas, Tár será contaminada pelo horror que exerce nos outros. 

Logo, a jornada se desenha entre ascensão e queda, partindo do céu ao inferno. Cate Blanchett explora com impressionante facilidade as nuances desta mulher meio pedante, meio solitária; ora gentil, ora predatória. Os olhos vidrados do início sugerem o ápice de uma crise interna cuja motivação compreenderemos apenas no final. A atriz desenha sua própria partitura de um desenvolvimento preciso, microscópico, tão elegante nas imagens e na composição quanto visceral nas sugestões de ordem psicológica.

Desta maneira, Field se distingue de outros suspenses psicológicos que mergulham na psique de gênios perturbados. Cisne Negro (2010) era visto pelo olhar da bailarina, e se deliciava com o espetáculo sórdido de sua decadência. A Professora de Piano (2001) preferia enxergar a perversidade da pianista enquanto sintoma de uma repressão sexual, por um viés psicanalítico. Aqui, o criador nunca analisa de onde vêm os impulsos e atitudes da artista. Em especial, nunca se delicia com sua queda, e tampouco convida o público a ter pena de Tár.

Este posicionamento ambíguo, multifacetado, garante as inúmeras possibilidades de leitura no filme, que expandem seu significado ao invés de reduzi-lo. Ele é mais do que um filme “sobre a cultura do cancelamento”, “sobre as relações de poder em orquestras de alto nível”, “sobre a exploração trabalhista entre artistas”. Field tenta compreender como estes elementos se afetam e se provocam, de modo que a vida íntima e pública de Tár sejam indissociáveis. Trabalho e amor; família e arte constituem capítulos de uma única obra. 

Assim, as imagens elegantes, bem compostas, com suas baixas luzes e tons cinzentos-azulados não provocam admiração nem a impressão de luxo. Pelo contrário, sugerem o vazio, uma despersonalização na vida desta mulher, uma incapacidade de se recuperar das próprias falhas que voltam para persegui-la. A frieza de Tár provoca incômodo, posto que o diretor nunca nos convida a invejar estas pessoas, nem a admirar o belo mundo das artes clássicas. Ele consegue olhar as pessoas, os sistemas e processos socioculturais com tanto interesse quanto distanciamento. Aí reside a beleza estética e intelectual deste misterioso filme.

Tár (2022)
9
Nota 9/10

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