Vidro Fumê (2024)

A violência como entretenimento

título original (ano)
Vidro Fumê (2024)
país
EUA, Brasil
gênero
Suspense, Drama, Policial, Ação
duração
98 minutos
direção
Pedro Varela
elenco
Ellie Bamber, Mari Oliveira, Augusto Madeira, James Frecheville, Jorge Neto, Digão Ribeiro, Francisco Gaspar, Ramon Francisco, Fabrício Assis
visto em
Cinemas

Houve tempos em que o procedimento utilizado por Vidro Fumê era muito mais comum no cinema brasileiro. No intuito de denunciar a violência urbana, os diretores se aproximavam ao máximo dos sequestros, torturas, agressões e humilhações, em tempo real, para que o espectador pudesse ver de perto do que a criminalidade era capaz. Dialogava-se com a insegurança na base do choque: venha ver como é atroz aquilo que ocorre nas periferias! Testemunhe de perto a brutalidade das ruas, a selvageria de traficantes e ladrões! Aproxime-se, de modo seguro e confortável, do perigo que ocorre aos outros!

Aos poucos, esta forma de representação começou a ser questionada, quando se superou a febre de Tropa de Elite, o renome de Cidade de Deus e a popularidade de projetos derivados como Federal e Operações Especiais. Críticos e pesquisadores apontaram, enfim, o fetiche da violência, o prazer perverso em transformar a delinquência em entretenimento para as massas. Muitos destes projetos retratam pessoas periféricas unicamente na condição de bandidos (em especial, cidadãos negros), enquanto os policiais desempenham seus papéis exemplarmente, com exceção de um ou outro chefe corrupto. 

Os debates cinematográficos passaram a incorporar a ideia de que não é possível criticar a violência e se divertir com ela ao mesmo tempo, ou seja, fingir certo horror diante de sequências de agressão que nos parecem, afinal, tão sedutoras. Ou nos distanciamos delas, em chave crítica, de repulsa, ou imergimos no lazer das mesmas de maneira condescendente. Ou investigamos as origens da desigualdade, trabalhando nuances de gênero, classe e raça, ou caímos no estereótipo nocivo e, com frequência, racista, do outro contra nós — “nós”, neste caso, correspondendo ao espectador presumido branco e de classe média.

O discurso profundamente didático da conclusão contrasta com as imagens exibidas nos 90 minutos anteriores, como se as vozes em off quisessem politizar uma narrativa que se deliciava com a exploração da miséria alheia. Tarde demais.

No entanto, às vezes, ainda aparecem no circuito comercial filmes que pretendem conjugar as ideologias opostas: denunciar a brutalidade e se deliciar com ela. Sequestro Relâmpago se colocava no ponto de vista de uma patricinha risível; O Homem Cordial adorava filmar cada humilhação de pessoas negras e pobres em planos longos, próximos e gritados; Pacificado concebia uma favela carioca onde todos os moradores dotados de falas eram, sem exceção, traficantes ou viciados em drogas. Vidro Fumê se une ao grupo.

Os letreiros avisam, desde o princípio, se tratar de “fatos reais” (sic). Eles se baseiam no caso da garota estrangeira, sequestrada junto ao namorado, e estuprada por um grupo de rapazes no interior de uma van clandestina. O espectador é convidado a se apiedar por ela, uma jovem gentil, cheia de planos para o futuro, apaixonada pelo Brasil, e muito acolhedora de pessoas negras. De certo modo, enxerga-se nela uma ingenuidade, como se o posicionamento progressista fizesse da heroína de pele muito branca um alvo ainda mais fácil, devido à ausência de malícia.

Uma vez que a hostilidade se inicia, a câmera decide acompanhar a noite infernal no veículo. Cada xingamento, cuspida, ameaça e humilhação é retratada em planos próximos. Os atores encarregados dos vilões carregam na aparência de malvados, enquanto Mary (Ellie Bamber) apenas suplica para ser liberada. Cria-se suspense pela possibilidade de fuga, ou de ser salva durante as paradas em caixas eletrônicos para a retirada de dinheiro. O diretor Pedro Varela busca um tom “empolgante”, “eletrizante” ao acompanhar passo a passo do calvário alheio, ao invés de representá-lo em ferramentas menos sensacionalistas.

Em paralelo, a montagem combina a trajetória da estudante com aquela de Miriam (Mari Oliveira), moradora de comunidades, assediada pelo corrupto político Azevedo (Augusto Madeira). Fica clara a predileção dos editores Felipe Lacerda e João Lobo pelo calvário da estrangeira, em detrimento da brasileira. Enquanto se observa o sofrimento de Mary de perto, a ativista nacional segue em montagem paralela sem que o espectador entenda, até a reta final, qual seria o real conflito da segunda garota. Ela soa como um apêndice da história central, de importância reduzida. 

Até por isso, a direção se foca no estupro de Mary, enquanto meramente sugere aquele de Mari — curiosa escolha de espelhamento movida por ordem de importância. Mesmo assim, ambas ganharão a oportunidade de se olhar no espelho, seminuas, para a câmera filmar o corpo de ambas após a agressão. Péssima escolha de revelar a nudez de ambas apenas ao espectador, num registro voyeurista, ao invés de justificá-la narrativamente (num exame de corpo de delito, por exemplo). 

O olhar dos criadores se posiciona, de certo modo, junto aos invasores e exploradores destas personagens. Ainda que não filme o estupro em si, o ponto de vista tampouco se posiciona junto a Mary logo após ser violentada, nem se concentra no sofrimento psíquico da protagonista. Prefere a chave do rape and revenge, o estupro e vingança, numa sequência espetacularizada incluindo fuga ao nascer do sol, arma na mão e devolução das ameaças sofridas. O texto ainda inclui menções românticas aos planos de alugar um apartamento maior com o namorado Gabriel (James Frecheville), em pleno choque de um estupro.

Os diálogos de Vidro Fumê se mostram particularmente ruins, sobretudo a narração didática, em tom de mea culpa, na voz de Miriam. “A pergunta é: podemos existir e sermos invisíveis?”. “Como que a gente sai desse lugar?”, ela se questiona ao final, em relação ao ciclo de violência ou, como chama um bandido, a “festinha do mal”. O discurso profundamente didático da conclusão contrasta com as imagens exibidas nos 90 minutos anteriores, como se as vozes em off quisessem politizar uma narrativa que se deliciava com a exploração da miséria alheia. Tarde demais.

Assim, as atuações soam fracas, pois estereotipadas em funções narrativas. Há mocinhas e bandidos, vilões e vítimas, destituídos de subjetividade ou de vida para além do percurso de exploração. Em outras palavras, as mulheres permanecem na posição de objetos do olhar, jamais sujeitos que controlam o ponto de vista e narram o episódio por sua perspectiva. Os criadores ainda convidam ótimos atores como Jorge Neto, Digão Ribeiro e Francisco Gaspar para desempenharem pequenos coadjuvantes, em cenas destinadas a escancarar o racismo, ironicamente reproduzido pelo filme em sua banalização da imagem do crime.

Vidro Fumê nasce anacrônico, ultrapassado em sua proposta política e sua visão de mundo. Denuncia a existência de um sistema corrompido, sem tentar entender como ele se configura, nem suas nuances ou transformações ao longo do tempo. Reforça a premissa reacionária de que todo político é corrupto (a velha descrença na política institucional, sugerindo que tanto faz eleger uma vertente ou outra), enquanto a polícia, apesar da má vontade, efetua seu papel muito bem, obrigado. Às garotas, cabe chorar, narrar uma frase de conscientização em off e mostrar o corpo de calcinha e sutiã ao espectador, logo após serem estupradas. 

Vidro Fumê (2024)
3
Nota 3/10

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