José Aparecido de Oliveira: O Maior Mineiro do Mundo (2019)

Curriculum vitae

título original (ano)
José Aparecido de Oliveira: O Maior Mineiro do Mundo (2019)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
88 minutos
direção
Mário Lúcio Brandão Filho e Gustavo Brandão
elenco
Fernanda Montenegro, Ziraldo, José Sarney, Luiz Carlos Barreto, Sepúlveda Pertence, Geraldo Carneiro, Vladimir Carvalho, Jaguar, Celso Amorim
visto em
Cinemas

Vamos propor um exercício de imaginação. Alguém chega ao montador de José Aparecido de Oliveira: O Maior Mineiro do Mundo e lhe pede para retirar todas as frases elogiosas a respeito do protagonista. Pode manter todas as outras, menos as superlativas. Não sobraria o suficiente para rechear um curta-metragem.

Isso porque, segundo o longa-metragem dos diretores Gustavo Brandão e Mário Lúcio Brandão Filho, Zé Aparecido “tinha a brasilidade na alma”. Mas “não é só mineiro, é brasileiro”. Ele foi persuasivo, disciplinado, dotado de grande “paixão pelas ideias”, além de uma “força que dificilmente se encontra”. Cativava a todos, possuía uma “oratória brilhante”, e “só se interessava pelo bem público”

“Se todo mundo fosse como ele, o Brasil seria uma coisa extraordinária”. Afinal, era “um homem à frente do seu tempo”, “extremamente talentoso”, com uma “facilidade impressionante para conseguir dinheiro”. Eis mais uma virtude deste homem: “poderia ter se tornado biliardário”, mas preferiu não fazê-lo. Não se interessava pelo enriquecimento. Era “muito cativante, se fazia amigo de todos”. Teve “um papel muito importante na resistência democrática”. “Resolveu muita coisa, ajudou muita gente”. “Soube unir todas as facções”, à direita e à esquerda.

Zé Aparecido “não tinha preconceitos”. Tinha a “cabeça aberta para tudo e para todos”, além da “força de persuasão enorme”, de ser “mestre em conciliar diferenças”. Ele “salvou Brasília”. “Era um cidadão”, que “lutava pela paz e pela solidariedade entre os países de língua portuguesa”. “Transformou o Atlântico num riacho”, por ser “o centro de convergência da CPLP”. “Não era um político, era um homem público”“o maior amigo do mundo”

O filme defende Zé Aparecido com unhas e dentes, utilizando dezenas de testemunhas de defesa dispostas a atestar sua moral incorruptível. Falta saber de quê ele estava sendo acusado para justificar tamanho esforço de marketing

Se esta lista de enaltecimentos soa enfadonha, imagine então assistir a 90 minutos compostos quase unicamente por estas frases, uma após a outra. Para os criadores, os principais méritos políticos de Jânio Quadros, Tancredo Neves e José Sarney, na verdade, pertenciam a Zé Aparecido. Chega a ser difícil compreender porque ele era tão temido pelos adversários, posto que seu retrato reúne apenas os maiores louvores que um homem poderia reunir na face da Terra. Quem teria medo do maior amigo do mundo?

Neste sentido, sugerir que ele “não era político” constitui mera ferramenta de retórica, fruto destes tempos em que ser político equivale a ser ladrão, manipulador, sedento por poder. Como pode o secretário, ministro e articulador de tantos governos não ter sido um político? José Aparecido de Oliveira: O Maior Mineiro do Mundo abraça tal papel retórico em sua totalidade. Convida inúmeras dezenas de pessoas, apenas para repetirem, em uníssono, as virtudes infinitas do personagem.

Os criadores buscam se legitimar pela importância dos entrevistados. Fernanda Montenegro, Ziraldo, José Sarney, Luiz Carlos Barreto, Vladimir Carvalho e Celso Amorim são alguns dos grandes nomes solicitados a compor a cine-homenagem. Trata-se de um luxo reunir tal time — Fernanda Montenegro tem, aqui, mais tempo de tela do que em A Vida Invisível (2019), por exemplo. No entanto, tornam-se intercambiáveis, indistintos, pois todas as falas o são. Interessa saber quem o chama de “moderno”, e quem o considera “à frente do seu tempo”? Tanto faz. Vence a saturação, a repetição.  Se as vozes repetem seus valores unanimemente, então devem ser verdade.

Trata-se de uma compreensão bastante particular do documentário. Primeiro, por acreditar que a linguagem se resume a cabeças falantes e materiais de arquivo, intercalados didaticamente pela montagem. Os personagens mencionam a política da época, de maneira descritiva, linear e cronológica, tendo seus discursos ilustrados por fotografias e vídeos.

O próprio Zé Aparecido aparece pouco, com raros registros sonoros à disposição. Interessa aos cineastas, em especial, esta imagem sobre-humana criada por terceiros — a imagem do homem ultrapassa o homem. Devido à importância atribuída à nobreza do tema, nenhum esforço é atribuído à construção estética — difícil pensar em uma única imagem dotada de interesse de linguagem, para além das tradicionais entrevistas na sala de casa, ou em frente às estantes de livros.

Segundo, por estimar que, diante de um sujeito adorado, o papel do cinema seria de ordem hagiográfica. A dupla de diretores nunca tenta compreender o homem, perceber suas contradições, ou eventuais pontos de atrito. Pelo contrário, preferem defendê-lo com unhas e dentes, utilizando dezenas de testemunhas de defesa dispostas a atestar sua moral incorruptível. Falta saber de quê ele estava sendo acusado, para justificar tamanho esforço de marketing

Terceiro, cabe pensar a quem se dirige um ponto de vista tão restrito a respeito de José Aparecido de Oliveira. Os amigos e parentes certamente adorarão o resultado — muitos deles são convidados pelo filme a relembrar os melhores momentos do pai e colega. Ao público sem relações com o núcleo próximo do herói, o que se pode extrair do retrato? Como acreditar numa colagem tão parcial, seletiva e unidimensional da política brasileira? Imagine um filme sobre qualquer político brasileiro narrado exclusivamente por seus familiares e amigos mais queridos. Você acreditaria nesta obra enquanto representação dos fatos?

Desde Sobral — O Homem que Não Tinha Preço (2013) e Santoro — O Homem e sua Música (2015), o cinema brasileiro não encontrava um documentário tão apologético, e tristemente superficial, a respeito de uma pessoa que mereceria um mínimo de nuances. Conhecemos pouco da humanidade de Zé Aparecido porque, aqui, ele é elevado ao status de um deus. Qualquer pessoa endeusada, em pleno século XXI, desperta mais suspeitas a respeito do retrato do que adesão ao discurso tão forçosamente martelado em nossos olhos e ouvidos.

José Aparecido de Oliveira: O Maior Mineiro do Mundo (2019)
2
Nota 2/10

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