Tudo ou Nada (2023)

A dinâmica do caos

título original (ano)
Rien à Perdre (2023)
país
França, Bélgica
gênero
Drama
duração
112 minutos
direção
Delphine Deloget
elenco
Virginie Efira, Félix Lefebvre, Arieh Worthalter, Mathieu Demy, India Hair, Alexis Tonetti, Andréa Brusque, Oussama Kheddam
visto em
Cinemas

Alguns cineastas entendem por “drama” uma perspectiva de sofrimento. Eles imaginam doenças letais, amantes separados, filhos sofrendo de saudades dos pais falecidos. Pense em O Óleo de Lorenzo (1992), Lado a Lado (1998), Doce Novembro (2001). Bebendo nas fontes do melodrama, acreditam oferecer aos atores um banquete ao permitirem o choro, a catarse, o desespero. Estimam que o valor de uma atuação e de um sentimento reside na capacidade de se exteriorizar e chegar ao público na forma de lágrimas, sangue, grito. A dor se converte em espetáculo.

O cinema franco-belga contemporâneo, de tradição voltada ao realismo social, recusa de modo geral a manipulação excessiva dos sentimentos. (Há notáveis exceções na figura de Valeria Bruni Tedeschi e Maïwenn, entre outros). Em oposição à tendência hollywoodiana, parte do princípio que o verdadeiro presente aos atores seria a demanda de não chorarem quando haveria motivos suficientes para tal. A heroína deste cinema de classe média-baixa é a mulher que trabalha, cuida dos filhos, paga as contas e apaga mil incêndios diariamente. Este é o caso de Rosetta (1999), Dois Dias, Uma Noite (2014), Contratempos (2021).

Tudo ou Nada se filia a este último grupo. A diretora Delphine Deloget parte da dinâmica do caos, atribuindo uma quantidade infinita de problemas a Sylvie (Virginie Efira). Ela cuida sozinha de dois filhos, e não tem com quem deixá-los quando vai ao trabalho de garçonete. No bar, os clientes são inconvenientes; a pia tem um vazamento; o irmão mais velho convulsiona na pista de dança. O filho pequeno possui um temperamento explosivo, o adolescente se sente negligenciado. Eventualmente, a corda rompe: o pequeno Sofiane (Alexis Tonetti) se queima com óleo fervendo enquanto Sylvie está fora.

Um longa-metragem niilista por sua visão amarga da vida adulta, e pela sugestão de que toda intromissão do Estado funciona como mero tapa-buracos para uma cratera gigantesca.

Entram em cena os serviços sociais, os policiais, os juízes. O menino é retirado da família por agentes que exigem tempo para analisar a possível negligência da mãe. Mais problemas se acrescentam à vida da heroína: agora ela precisa lidar com advogados, com o julgamento moral dos amigos, as opiniões dos dois irmãos (Arieh Worthalter e Mathieu Demy), com a dificuldade de gerenciar o emprego e as obrigações legais. Entretanto, Sylvie não chora. Ela se cansa, se irrita, e segue adiante.

A direção insiste que o espectador se posicione ao lado desta mãe à beira de um ataque de nervos. Mesmo compreendendo sua falha em deixar os filhos sozinhos todas as noites, demonstra que ela não poderia fazer de outra maneira. Nota-se uma bela solidariedade em relação à protagonista, algo que nunca se confunde com condescendência, nem paternalismo. O roteiro sublinha os excessos ou descuidos desta mulher repleta de falhas, e cujo afeto pelos garotos soa bastante verdadeiro. “É preciso mais do que amor para criar um filho”, menciona um personagem, evocando o lema que talvez resuma o drama em sua totalidade.

Logo, inexistem vilões e heróis, mártires ou algozes. O sistema social busca, de fato, ajudar esta mulher que se nega a aceitar a delicadeza de sua situação. Os generosos assistentes sociais — outra figura-chave deste realismo social à francesa — procuram uma família amorosa para Sofiane, tentam negociar com a mãe feroz, e perdoam algumas derivas (físicas, inclusive) da mulher. Embora discordemos da posição deles, porque nosso olhar se situa junto à mãe, nunca somos levados a considerá-los perversos ou insensíveis.

Mesmo assim, o drama transparece um pessimismo em relação ao funcionamento deste sistema de proteção. Tudo ou Nada se converte em um longa-metragem niilista por sua visão amarga da vida adulta, e pela sugestão de que toda intromissão do Estado funciona como mero tapa-buracos para uma cratera gigantesca. Apesar da boa vontade de todos os personagens envolvidos no caso, os pais mais prejudicam do que ajudam; os amigos tampouco oferecem suporte; e o extenso painel de assistentes sufoca a mulher angustiada.

Não há saída, afinal. Por isso, é preciso que a conclusão se torne uma não-conclusão, uma impossibilidade de aceitar as regras do jogo e enfrentar o sistema tão-benevolente-quanto-opressor. O desfecho se converte num dane-se à coletividade, um dedo do meio erguido orgulhosamente às soluções constitucionais. Vence o desespero ou, pelo menos, a intransigência. Sylvie constitui, do início ao fim, uma figura punk face à estrutura pragmática e protocolar, composta por cartas, audiências e formulários. Ela se recusa a encontrar um namorado, apesar dos conselhos dos irmãos; ignora as palavras doces da Sra. Henry (India Hair), e explode contra os patrões insensíveis. 

Virginie Efira se prova uma ótima escolha para o papel, graças à capacidade de implodir quando tantas atrizes ficariam tentadas a encontrar tiques no rosto, a alterar o tom da voz, e encarnar a mãe-coragem. Posto que a narrativa está repleta de reviravoltas e atividades em si própria, cabe a esta mulher somente reagir aos inúmeros estímulos que a atingem. Ela se torna responsável por parte ínfima das ações, ocupando-se sobretudo de gerenciar uma quantidade impensável de violências cotidianas. Neste sentido, o resultado funciona enquanto bela representação da condição feminina no século XXI.

Deloget opera suas imagens numa espécie de profissionalismo discreto, onde todas as funções executam bem os seus papéis, sem chamar atenção excessiva a si mesmas. Trata-se de uma cartilha que agrada muito aos festivais pelo mundo (este filme foi selecionado no Festival de Cannes) pela possibilidade de registrar o caos com uma câmera ágil, porém não frenética; imaginar uma casa modesta e bagunçada, embora evitando a caricatura; além de uma luz natural discretamente ajudada pelos refletores, que nunca se revelam enquanto tais. Cada elemento opera em favor desta mulher simples, preparando o palco para que ela brilhe.

Efira o faz, sem dificuldade, cercada por atores igualmente talentosos. O resultado se mostra tão admirável quanto previsível dentro de um subgênero que pensa as dinâmicas de classe e gênero por uma perspectiva politizada, e ainda elegante, funcional, marcada por imagens claras, limpas, bem compostas, comportadas. A mise en scène demonstra mais competência do que imaginação; mais profissionalismo do que ousadia. A última década trouxe ao público pelo menos vinte dramas igualmente bons realizados por cineastas franceses, a partir de temas e estéticas semelhantes. Cabe saber se este é um motivo de comemoração ou de alerta.

Tudo ou Nada (2023)
6
Nota 6/10

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