Verissimo (2024)

Comédia da vida privada

título original (ano)
Verissimo (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
90 minutos
direção
Angelo Defanti
visto em
29º Festival É Tudo Verdade (2024)

O homem sentado no sofá de casa. Talvez a imagem menos esperada de uma “celebridade” seja aquela do indivíduo cochilando em frente à televisão, fazendo repetidos exercícios de fisioterapia, esperando na fila do médico, jogando Paciência no computador. No entanto, o diretor Angelo Defanti propõe este olhar caseiro a Luis Fernando Verissimo, nos quinze dias que antecedem a comemoração de 80 anos. A contagem regressiva se anuncia em tela, na forma de letreiros.

A escolha por este período específico se justifica: a proximidade da data intensifica a atenção da família e da mídia pelo autor. Multiplicam-se os pedidos de entrevista, mesa redonda, aparição em eventos. O sujeito tímido, introvertido e um tanto cansado (ele sonha em se aposentar de fato) se presta com disposição razoável a inúmeras solicitações e homenagens. Verissimo constitui o indivíduo famoso, porém avesso à fama; o tipo cujo talento para a criação literária nunca foi acompanhado pelo prazer da autoexposição. 

Em tempos de redes sociais, isso representa um conflito narrativo considerável, algo que o documentário acompanha bem. A fricção entre o que se esperaria do aniversário de 80 anos de um escritor querido (euforia, ansiedade, grande felicidade) se contrasta com os dias pacíficos e a aparência contida do protagonista. O mundo se ouriça em torno do sujeito plácido. Assim surge o humor do longa-metragem, espécie de crônica da vida pública invadindo, cheia de presentes e abraços, a calmaria da vida privada.

O filme se destaca ao estabelecer um contato entre as crônicas simples de Verissimo e uma linguagem cinematográfica de vocação semelhante.

Por isso, o projeto ostenta um ritmo leve, agradável, ainda que repleto de imagens de casas vazias ou do escritor solitário num canto da sala. A esposa Lúcia se mostra mais enérgica; a neta o convida para diversas brincadeiras infantis. Ele negocia com os filhos a possibilidade de comer doces, algo que a diabete não permitiria. A terna comédia reside igualmente na possibilidade de enxergar em Verissimo um avô ou pai qualquer, movido pelas vontades e lassitudes comuns a qualquer brasileiro da sua idade. O avesso do gênio excepcional.

A narrativa desperta o riso, igualmente, diante do retrato lamentável do jornalismo e da mídia, tomada pela necessidade de viralizar e corresponder às necessidades das redes sociais. O homem precisa responder a uma infinidade de perguntas estúpidas do tipo “Qual livro levaria para uma ilha deserta?”, enquanto uma repórter o observa com uma condescendência infantil, falando em tom materno que ele está muito bem para a idade. Verissimo repete jargões criados especificamente para as perguntas acerca de seus 80 anos. A fábrica sorridente e vazia do marketing se sobrepõe à criação artística.

A direção efetua um ótimo trabalho no sentido de aparentar pouca intromissão no meio familiar. Através de planos fixos, cuidadosamente posicionados no canto dos cômodos, Defanti deixa que Verissimo, esposa, filhos e netos conversem de maneira despojada à sua frente. Junto ao diretor de fotografia Bruno Polidoro, ele dispensa os planos próximos e o controle excessivo do ponto de vista — os olhos do espectador podem passear livremente pelos enquadramentos amplos. As únicas entrevistas serão aquelas concedidas à mídia, quando se observam os repórteres, a luz, o tripé. O dispositivo das entrevistas interessa mais do que as falas protocolares.

Entretanto, o projeto sofre com muitos problemas de som. As falas de Verissimo estão sempre impecavelmente registradas, porém, o mesmo não vale para o mundo ao redor. Assim, um passeio na escola das netas torna as conversas incompreensíveis, e outras reuniões sofrem o tratamento muito fraco da pluralidade de estímulos presentes. Em se tratando de um documentário avesso à urgência, que posiciona a imagem e os enquadramentos onde deseja, e se dispõe a esperar pela ação à sua frente, seria esperada maior preparação para captar igualmente os acontecimentos em termos de som e ruídos.

A câmera sabe exatamente para onde se mover quando Verissimo vai ao jardim de casa, porém o som se vê indeciso quanto à melhor maneira de registrar tal variação. A narrativa inteira gira em torno da expectativa da festa. Como o som pode não estar preparado para captar os ruídos de dezenas de pessoas no local, quando chega o dia D? Ou para registrar a apresentação de uma banda de jazz, cuja presença era certamente de conhecimento da equipe?

Os autores optam pelo uso de legendas, uma escolha que facilita a compreensão enquanto sublinha a insuficiência do tratamento sonoro. Caso assumisse que a algazarra constitui uma finalidade própria, representando um amálgama de conversas indistintas, o filme poderia dispensar este recurso e confessar que somente os balbucios de Verissimo o interessam de fato. Ao introduzirem legendas em momentos pontuais, transparecem o fato que adorariam possuir captações sonoras mais cuidadosas, no entanto, contornaram o problema da melhor maneira que puderam.

Por fim, o resultado se destaca ao estabelecer um contato entre as crônicas simples de Verissimo e uma linguagem cinematográfica de vocação semelhante. O autor certamente escreveria um belíssimo texto a respeito destes dias frenéticos à espera de seus 80 anos, caso em que adaptaria o filme de Defanti à literatura, em caminho inverso. Aqui, o cineasta não precisa relembrar que se trata de um homem famoso, autor das Cobras, do Ed Mort, da Velhinha de Taubaté, etc. Prefere que a literatura o cerque de maneira muito orgânica, através dos livros espalhados pela casa, das menções ao seu percurso em jornais, e até do restaurante dedicado à sua obra.

Ainda mais curiosa é a possibilidade de assistir, com cerca de seis meses de diferença, a dois projeto dedicados a Verissimo. Em oposição a este filme caseiro e discretamente engraçado, Luis Fernando Verissimo — O Filme (2023), de Luzimar Stricher, partia para uma forma convencional de elogio e explicação do biografado. Preferia as pessoas sentadas, dando entrevistas e elogiando os méritos do escritor — em outras palavras, o cinema enquanto homenagem, resumo e portfólio. Uma prova de que o mesmo tema, personagem e espaço pode dar origem a (pelo menos) duas formas de cinema e de ponto de vista radicalmente diferentes. 

Verissimo (2024)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.