O Cinema por Dentro (2023)

A construção da linguagem

título original (ano)
The Cinema Within (2023)
país
EUA, Turquia, Japão
linguagem
Documentário
duração
93 minutos
direção
Chad Freidrichs
visto em
29º Festival É Tudo Verdade (2024)

É consenso nos estudos de cinema que os espectadores passaram a compreender algumas convenções de linguagem enquanto formas naturais de representação do mundo. No caso da montagem, se uma pessoa olha para o céu, e a imagem seguinte expõe a copa de uma árvore, acreditamos que o personagem está admirando a árvore. Ora, talvez humano e natureza nem se encontrem no mesmo país, pois a edição pode aproximar fragmentos de universos distintos, despertando um significado diferente daquele que ambas imagens poderiam adquirir separadamente. Pense no efeito Kuleshov, por exemplo.

Entretanto, o diretor Chad Freidrichs dá um passo atrás e questiona: por que este mecanismo funciona? Desde quando tal associação foi aceita pelo espectador? Que elementos, na psicologia e na biologia humanas, permitem a compreensão de uma linguagem audiovisual? Esta percepção vale para todas as formas de montagem, ou apenas para algumas delas? Existem cortes e justaposições mais facilmente compreensíveis que outros? Como o olho humano pode se concentrar nestes códigos e decifrá-los?

Deste modo, O Cinema por Dentro (The Cinema Within) parte de uma constatação óbvia (a existência de preceitos básicos da montagem) para chegar a uma indagação nada evidente (a origem fisiológica da gramática audiovisual). O cineasta conversa com pesquisadores especializados em psicologia, neuropsicologia e estudos de percepção fílmica. Até uma acadêmica que investiga a frequência de piscadas de espectadores diante de uma imagem intervém neste painel especulativo. 

O Cinema por Dentro permite ao espectador tomar distanciamento em relação a mecanismos audiovisuais tidos como naturais, algo que vai além da montagem.

Entram em cena testes empíricos, conceitos teóricos, encontros entre diferentes especialistas. O documentário jamais oculta a sua vocação acadêmica, para além de metalinguística. Friedrichs desenvolve um filme a respeito da nossa percepção de filmes, demonstrando plena consciência do uso do cinema enquanto estudo de caso. Ele brinca com a própria montagem, promovendo inúmeros exemplos de uma percepção falseada ou deduzida a partir dos simples cortes da edição. Apesar de possuir evidente caráter didático, o projeto esmiúça conceitos nada fáceis de compreender, sobretudo ao público médio.

Por isso, o autor não se preocupa em fornecer respostas claras e definitivas a respeito das indagações lançadas. Como bom pesquisador, compreende que o estudo constitui um caminho e um meio, ao invés da finalidade. A pesquisadora turca, após testes com um povoado que jamais assistiu a um filme antes, lança apontamentos promissores, ainda que distantes de uma conclusão. Ela sugere que certas formas de montagem seriam mais facilmente assimiladas do que outras por espectadores leigos, e que o som ajudaria a completar o sentido da montagem imagética.

A jovem japonesa dedicada às piscadas indica que os espectadores piscam aproximadamente no mesmo momento, quando o sentido de uma ação foi compreendido. Este seria, de acordo com montadores veteranos, o ponto ideal para o corte da cena. Psicólogos também indicam que nosso olho efetuaria sua “montagem” ao se concentrar em diversos aspectos do mundo ao redor, “borrando” ou ocultando detalhes que não lhe interessam entre dois pontos focais. Por isso, a montagem transporia à arte um processo natural do olho humano.

Nenhum destes conhecimentos atinge o status de teorias reveladoras ou surpreendentes. Contentam-se em fornecer pistas, ou ainda, em refinar as perguntas para melhor encontrar respostas. Na sala de cinema, alguns espectadores (todos eles profissionais da imprensa, nesta sessão em particular) se mostraram frustrados com os resultados, como se o tateamento de terreno efetuado pelo diretor não fosse digno de um filme. Para outros, Freidrichs se prenderia aos aspectos previsíveis da montagem. São dois argumentos difíceis de corroborar, mas que talvez digam muito a respeito de nossa ânsia por um conhecimento pronto, chocante, espetacular. Ora, o autor se interessa, em primeiro lugar, pelo processo.

O Cinema por Dentro permite ao espectador tomar distanciamento em relação a mecanismos tidos como naturais, algo que vai além da montagem. Por que a trilha sonora emociona, ou transforma o sentido da cena? Por que a iluminação direta ou difusa, dura ou homogênea, produz sensações diferentes? Que elementos de direção de arte sustentam a aparência de verossimilhança, mesmo em contextos de fantasia? Trata-se de um mergulho estético no cinema enquanto forma de pensamento.

De certo modo, este gesto constitui uma afronta à cinefilia acostumada a colecionar obras, a devorar filmes de tal diretor ou tal movimento. Na academia, os pesquisadores que estudam o cinema enquanto fenômeno (social ou psicológico) sempre recebem menos atenção do que os pesquisadores dos palhaços em Fellini, das mulheres em Godard ou dos sonhos em Lynch. Existe uma compreensão tácita de que cinema equivale a filmes, o que não poderia ser mais falso. O diretor deste projeto se envereda por esta cinefilia que jamais estuda nenhuma obra em particular, privilegiando o cinema em si

Por fim, a obra sustenta a atmosfera de um work in progress. Poderia continuar, indefinidamente, através de novas descobertas, artigos e livros publicados. Enquanto projeto autônomo, pode frustrar graças à dependência excessiva de fatores extra fílmicos (o desenvolvimento das teorias cognitivas, no caso). Mesmo assim, nos relembra que o audiovisual pode ser pensado com o suporte da própria linguagem, ou seja, montando fragmentos para refletir a montagem, e dissociando trechos para discutir a dissociação de forma e conteúdo. Para a academia tão acostumada ao formato puramente textual, a iniciativa possui mérito considerável. 

O Cinema por Dentro (2023)
8
Nota 8/10

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