O Homem Cordial (2019)

Antipolítica

título original (ano)
O Homem Cordial (2019)
país
Brasil
gênero
Drama, Suspense, Policial
duração
83 minutos
direção
Iberê Carvalho
elenco
Paulo Miklos, Thaíde, Dandara de Morais, Thalles Cabral, Theo Werneck, Fernanda Rocha, Bruno Torres, Murilo Grossi, Mauro Shames, Felipe Kenji, Tamirys O’Hanna, André Deca
visto em
Cinemas

Os objetivos deste longa-metragem são louváveis. Busca-se denunciar a sociedade policialesca e punitiva, repleta de ódio às diferenças — em especial, aquela que saiu do armário desde o recente governo de extrema-direita. Através da história de um músico progressista, envolvido na tragédia que culmina na morte de um policial, o roteiro joga luz à cultura do cancelamento, ao papel desproporcional das redes sociais, aos assassinatos de reputação e à incapacidade contemporânea de lidar com opiniões diferentes das nossas. 

A linguagem também se justifica, à primeira vista. O diretor Iberê Carvalho (do belo O Último Cine Drive-In, 2015) decide isolar o protagonista Aurélio (Paulo Miklos) numa bolha de culpa e perseguição. No espaço de poucas horas, a direção de fotografia cola a câmera ao rosto do homem atacado, restringe ao máximo a profundidade de campo e aposta na impressão de claustrofobia ao ar livre desta “longa jornada noite adentro”. Já a montagem acelera as ações, promovendo inúmeros deslocamentos, embates e guinadas na duração sucinta de 83 minutos.

O Homem Cordial se aproxima bastante do cinema de ação. Ele abraça o mecanismo das perseguições a pé e de carro, além da violência enquanto motor narrativo (uma agressão gerando represália do agredido, e então um contragolpe, e assim por diante). É preciso que tudo seja exteriorizado, transformado em grito, em soco, em catarse. O herói jamais possui tempo ou oportunidade de sentir culpa, de repensar seus gestos, ou ainda de encontrar nuances nos sentimentos pelo garoto desaparecido. Ele precisa continuar correndo de um hospital ao bar, do bar ao morro, do morro à casa noturna. 

Os motivos para tais deslocamentos são bastante artificiais, meras convenções para atrapalhar a vida do protagonista ou torná-lo alvo de uma caçada obsessiva. Aurélio esquece o celular dentro de uma van, numa cena improvável, e então recusa a carona do mesmo veículo, por motivos inexplicáveis. Sem o aparelho em mãos, se vê obrigado a perambular pela noite paulistana. Chegando ao hospital, o noticiário na televisão está narrando precisamente o seu caso, é claro. Quando pisa na rua, qualquer pedestre o reconhece de imediato. 

O tom alarmista preocupa quando se encontra com uma estética do choque e da urgência. […] Resta uma denúncia estridente e vaga, contra todas as coisas, contra “tudo o que está aí”.

É irônico que a direita bolsonarista e a esquerda artista se unam no ódio a este roqueiro decadente e rebelde. Quando a conclusão nos revela exatamente o que houve no dia do acidente, descobrimos que a participação do roqueiro no caso teria sido mínima. Seria improvável que, do dia para a noite, o Brasil inteiro disparasse gritos de “assassino” em sua direção. Por este motivo, cenas como o pequeno protesto em frente à sua casa, e a reação de jovens negros num bar resulta bastante artificial no que diz respeito ao texto e às atuações. O filme acredita precisar de uma ação exagerada, explícita e exemplar para tornar a mensagem mais clara. Por isso, beira a caricatura na construção de algo que precisaria, caso visasse a verossimilhança, de muito mais nuances.

O projeto se converte naquilo que os franceses chamam de “filme de tema”. O Homem Cordial não possui um tema (ou vários), ele é seu tema. A partir do momento em que as questões de atualidade são escolhidas pelos roteiristas, os personagens se tornam meros acessórios para tal demonstração, tal qual as encenações de crimes em reportagens jornalísticas. Aurélio não possui passado, família, amores, objetivos para o futuro, gostos musicais. Inexiste uma vida para além do caso policial. Em paralelo, todas as figuras ao redor existem para ele, na intenção de provocá-lo e ameaçá-lo.

Esta obra se insere numa linha questionável de filmes brasileiros políticos que pretendem denunciar as grandes mazelas da sociedade contemporânea de modo extravagante, espetacular, violento. Chamada a Cobrar (2012), Sequestro Relâmpago (2018), O Segundo Homem (2022), A Jaula (2022) e semelhantes acreditam na necessidade de gritar nossos problemas a um público que se supõe ignorante diante desta situação. Por isso, explica-se que nunca fomos cordiais, como pregava certa antropologia, e que, pelo contrário, tornamo-nos animais selvagens e carniceiros. Caso alguém não saiba, o país está perdido, e fracassamos enquanto cidadãos.

O tom alarmista preocupa quando se encontra com uma estética do choque e da urgência. O Homem Cordial, além dos títulos citados acima e de outros “clássicos” nacionais (Tropa de Elite, Cidade de Deus) transformam a violência em motivo de empolgação, em excitação dos sentidos, visando provocar medo, repulsa, ansiedade, alívio, excitação, horror, raiva e afins. Dialoga-se com o aspecto mais epidérmico e imediato dos espectadores, algo que seria avesso ao distanciamento e à reflexão. Nunca somos convidados a testemunhar os fatos de maneira ponderada, podendo pender a um lado ou outro.

Em paralelo, jamais compreendemos Aurélio, este homem-gesto, homem-movimento, de motivações e emoções opacas. A linguagem se delicia demais com os prazeres do mundo cão para criticá-lo de fato. A mãe gritando pela perda do filho, a agressão gratuita do namorado à companheira e a onipresença do trio bolsonarista pelas ruas da cidade constitui uma instrumentalização dos dilemas sociais, convertidos em catálogo de adversidades. Em especial, o clímax com os policiais num beco (com seus close-ups, seu contraluz, seus diálogos mastigados com gosto pelos atores — “Pre-po-tên-cia!”) permite compreender que os criadores se divertem muito com a mise en scène da podridão humana, e desejam transmitir igual engajamento emocional ao espectador.

Em consequência, resta uma denúncia estridente e vaga, contra todas as coisas, contra “tudo o que está aí”. O texto se vê incapaz de conceber origens para o fenômeno, avaliar diferentes impactos em segmentos sociais, cogitar maneiras de driblá-lo. O roteiro opta pelo protagonismo do homem branco, rico, heterossexual e cisgênero, dando pouquíssima atenção às reais vítimas do caso (o garoto, em especial, mas também a irmã e a mãe). Sugere, assim, que a vítima, ao seu ponto de vista, seria o artista injustamente cancelado. Solidariza-se em primeiro lugar com este sujeito pouco agradável, um tanto mimado e inconsequente, ao invés daqueles que sofrem na pele com a desigualdade.

Por fim, terá dito muito pouco acerca dos mecanismos de opressão, limitando-se à constatação de sua existência. “Vivemos numa sociedade falida”, parece ser o ponto de partida e o ponto de chegada desta experiência, que se encerra num zoom-in improvável rumo a um rosto ferido que jamais chegaria, tal qual, aos palcos de um programa familiar de televisão. Após esta experiência amarga, compreende-se que os projetos políticos mais potentes do cinema brasileiro têm se distanciado do prazer da morte de minorias, preferindo enxergar laços sociais de maneira grotesca, cômica, surreal, fantasista — vide Bacurau, O Lobo Atrás da Porta, Arábia, Branco Sai, Preto Fica, No Coração do Mundo

O simples prazer das armas empunhadas e do vocabulário belicista; a incômoda cena de uma jovem negra puxada pelo cabelo, de um jornalista espancado no chão, de um artista pisoteado por um coturno, não servem mais como crítica política em tempos contemporâneos. Quando os filmes acreditam que a violência e os problemas possam ser divertidos e empolgantes em si mesmos, aderem ao discurso que pretendem criticar. Após esta imersão rápida e intensa nos porões da sordidez brasileira, resta a perturbadora impressão de que alguns filmes progressistas estão muito mais próximos de um cinema de direita do que imaginam.

O Homem Cordial (2019)
3
Nota 3/10

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