A Jaula (2022)

Estamos perdidos

título original
A Jaula (2022)
país
Brasil
gênero
Suspense
duração
83 minutos
direção
João Wainer
elenco
Chay Suede, Alexandre Nero, Mariana Lima, Astrid Fontenelle, Marimoon
visto em
Star+

A Jaula pode ser lido como um reflexo do Brasil atual. Embora adaptado de uma produção argentina de premissa idêntica (4×4, de 2019), ele representa a sociedade punitivista e raivosa, empoderada pelo governo Bolsonaro, que elegeu como prioridades o armamento da população, o ódio contra minorias e a imposição pela força (“A minoria vai se curvar à maioria”, lembra?). Trata-se de uma obra de fervor e ódio, muito ágil e pop, para representar um grupo de pessoas igualmente fervorosas e odiosas. Um estudo sobre o buraco em que nos metemos, enquanto coletividade.

No centro da trama existem dois polos distintos (percebidos como opostos e excludentes) da contemporaneidade: por um lado, o pequeno ladrão esperto, que deseja roubar o toca-fitas de um carro para dar alguma condição à esposa e filho pequeno no Capão Redondo. Por outro lado, um ginecologista reputado, que exige ser chamado de Dr. Henrique, autointitulado cidadão de bem e de boa índole, que decide transformar seu carro numa câmara de tortura análoga aos calabouços de Jogos Mortais (ou às câmaras de gás da PRF). Uma vez no interior do veículo, o rapaz não consegue mais sair. As portas travam, as janelas são inquebráveis, ninguém lá fora o enxerga, nem o escuta. 

O diretor João Wainer elabora uma narrativa acelerada até demais. Em menos de cinco minutos, Djalma (Chay Suede) já está preso no carro, desesperado. Em sete minutos, já tentou atirar contra os vidros blindados, recebendo a bala ricocheteada na perna. Em dez minutos, já está dormindo no veículo, no dia seguinte, com chances ínfimas de escapar. Como o longa-metragem poderia se desenvolver a partir daí? Entram em cena então a voz do proprietário-carcereiro via rádio, instalando um perverso jogo de manipulação entre predador e presa.

Esta fábula sobre a maldade dos homens de bem se encerra no mesmo ponto em que começou: a constatação da crise generalizada de valores.

Esteticamente, o cineasta acostumado aos documentários encontra boas saídas para driblar clichês e atribuir dinamismo ao espaço único. Junto ao diretor de fotografia Leo Resende Ferreira, encontra ângulos improváveis, multiplica os planos de detalhe, traz a descoberta de novos espaços escondidos no carro (compartimentos nos painéis, nas portas, itens acoplados aos pedais). As imagens são multicoloridas, de contraste acentuado, produzindo um teor eletrizante via montagem picotada, e apropriada aos tempos de redes sociais. Em certa medida, este conjunto de escolhas lembra uma versão atualizada de Dois Coelhos (2012), outro filme brasileiro espertinho, jovem e explicitamente político sobre as mazelas da corrupção social.

O elenco também se entrega com a verve exigida pelo conto de horror: Chay Suede chora, grita, transpira, geme e implora, como se esperaria do rapaz em cativeiro; enquanto Alexandre Nero se delicia com a fala cínica e arrogante do médico “que trabalha onde os outros brincam”, revelando em seguida o olhar maníaco e controlador. Mesmo Mariana Lima, aparecendo nos quatorze minutos finais, inspira autoridade, decisão, em mais uma composição de força para a mulher igualmente arrogante, e de moral dúbia. Todos são equivocados, extremados, violentos, raivosos. Não somos convidados a nos identificar com ninguém.

Neste aspecto, começam a aparecer as falhas do projeto enquanto discurso e construção artística. Os enxutos 83 minutos são dedicados única e exclusivamente a discutir a falência de um projeto social. Na cena inicial, Astrid Fontenelle interpreta um desses apresentadores de programas policialiescos e sensacionalistas, que se diverte com a prisão e tortura “de vagabundos”, pedindo mais severidade nos julgamentos e instigando um sentimento de vingança contra bandidos. É a voz dela que guia as cenas, retornando com potência nos instantes finais, pedindo uma execução exemplar e midiática, capaz de alavancar os números de audiência. Quando outro ladrão tenta invadir o carro, sem saber da presença de Djalma lá dentro, ele é espancado por moradores e pela polícia — e dá-lhe close-up no rosto ensanguentado do rapaz.

Em outras palavras, A Jaula é um filme óbvio. Ele não estimula o debate a respeito dos temas levantados, preferindo oferecer ao espectador uma reflexão pronta. Sabe-se quem detestar (Dr. Henrique, sobretudo), quais atitudes condenar, e qual constatação deveríamos levantar a respeito do nosso país. Traduzindo em miúdos, estamos perdidos, e fracassamos enquanto civilização. Não existe um espaço outro para se contrapor ao camburão de perversidade e tortura; nem uma pessoa outra para além do ladrão e do médico bolsonarista (cuja intenção de voto nunca é explicitada do filme, mas convenhamos, precisaria?). 

Logo, esta fábula sobre a maldade dos homens de bem se encerra no mesmo ponto em que começou: a constatação da crise generalizada de valores. Ao invés de um tema desenvolvido ao longo da trajetória, ou de uma estrutura dialética em tese, antítese e síntese, o filme parte de uma hipótese pronta, limitando-se a desenhá-la de modo exagerado, quase caricatural, para explicá-la com a maior clareza possível. Acentuam-se os traços do caráter e da construção de personagens para que a explicação seja compreendida até por pessoas sem apreço por ambiguidades e subentendidos — o longa-metragem certamente não acredita muito na inteligência do seu espectador.

Partindo de um diretor de claro posicionamento progressista, autor de belas obras documentais sobre o Brasil atual (caso de Junho: O Mês que Abalou o Brasil, 2014), a obra resulta estranhamente desesperançosa, cínica (o que não significa crítica), e bastante conformista na maneira de enxergar a violência sistêmica. Não há alternativas, causas, nem consequências do fenômeno. Ele existe, e grita ao espectador o perigo de sua existência. A Jaula apela aos sentimentos e sensações, à oposição entre bandido fedorento (coberto em urina, suor e sangue) e médico asséptico, de jaleco branco e spray odorizador em mãos. 

Ora, estes polos são redutores demais para uma sociedade complexa, movida por circunstâncias particulares, e em rápida transformação na sua relação política com a alteridade. Wainer demonstra competências louváveis de linguagem — ele respeita o silêncio do rapaz que não tem com quem conversar, nunca explicita a dor, a sede, o calor, nem o frio. Em contrapartida, se vê preso numa armadilha criada por dois ótimos roteiristas argentinos, e que se traduz num teatro de conveniências narrativas e personagens-acessórios, que representam tipos sociais ao invés de pessoas com histórias e subjetividades. Não é Djalma o indivíduo preso no carro-camburão.

A Jaula (2022)
5
Nota 5/10

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