Operação Cerveja (2022)

A perda da inocência

título original (ano)
The Greatest Beer Run Ever (2022)
país
EUA
gênero
Comédia, Drama, Guerra, Aventura
duração
126 minutos
direção
Peter Farrelly
elenco
Zac Efron, Russell Crowe, Bill Murray, Kyle Allen, Jake Picking, Will Ropp, Archie Renaux, Christopher Reed Brown, Joe Adler, MacGregor Arney, Hal Cumpston, Kevin K. Tran, Kristin Carey, Omari K. Chancellor, Matt Cook
visto em
Festival de Toronto

A premissa de Operação Cerveja desperta alguma preocupação. Os criadores partem da história real de John Donohue, ou “Chickie” para os amigos. O rapaz bem-intencionado, crente de que o exército norte-americano estava salvando o mundo durante a Guerra do Vietnã, decidiu fazer a sua parte: ir ao campo de batalha e levar algumas cervejas aos colegas em ação. Os planos soam absurdos aos familiares e amigos, porém o jovem não enxerga qualquer problema nesta ideia: é só entrar e sair, não faço parte do conflito, então nada deve acontecer comigo, certo?

A recordação da guerra pela perspectiva de um homem caridoso, apesar de pouco inteligente, poderia dar origem a filmes radicalmente diferentes — mesmo opostos. Esta exata premissa sera capaz de justificar uma obra a respeito da grandiosidade dos Estados Unidos neste episódio histórico, ou ainda um panfleto anti-imperialista e crítico à intervenção militar norte-americana. Em outras palavras, a apropriação do patriotismo enquanto tema serve tanto aos discursos nacionalistas e engrandecedores quanto àqueles que propõem uma releitura do das ações do país na Ásia durante os anos 1960 e 1970.

Para a surpresa geral, o diretor Peter Farrelly oferece um projeto relativamente questionador. O cineasta de Green Book: O Guia (2018), um drama profundamente ingênuo e condescendente com o racismo, parece ter escutado as inúmeras críticas para elaborar este novo longa-metragem, visto pela ótica da perda da inocência. Chickie, norte-americano padronizado, de conhecimentos limitadíssimos a respeito da guerra e da geopolítica, tem certeza da acachapante vitória de seus colegas contra os “comunistas”. Aos poucos, no entanto, percebe uma realidade menos idealizada do que imaginava.

O melhor aspecto da aventura reside no fato de retirar o heroísmo deste episódio lamentável da história recente. Em primeiro lugar, o texto introduz personagens de ideologias muito distintas: Chickie corresponde ao americanismo básico, afeito ao nacionalismo republicano, enquanto a irmã de tendência hippie questiona a presença dos Estados Unidos no país asiático, filiando-se ao campo democrata. O melhor amigo negro tem suas reservas a respeito das virtudes do combate, já o dono do bar (Billy Murray), um coronel veterano, defende de maneira ainda mais extremada o teor salvacionista da guerra.

O melhor aspecto da aventura reside no fato de retirar o heroísmo deste episódio lamentável da história recente.

A partir deste painel diversificado, a narrativa propõe que o cidadão comum, pouco interessado em História e política, reveja seus posicionamentos. É interessante que o herói seja um sujeito comum, de olhar externo e ingênuo, podendo oferecer ao espectador uma identificação distinta daquela que teria com os jovens soldados enviados à guerra. Chickie pergunta aos colegas no Vietnã onde dormem durante nas trincheiras, por que estão atirando, como pegar uma carona em pleno tiroteio e outros questionamentos que ninguém com o mínimo de bom senso, ou conhecimento de causa, perguntaria. 

O texto basicamente pega o republicano trumpista pela mão e lhe diz: vá e veja. Descubra o mundo por trás da pregação religiosa, ideológica e midiática. Nos tempos do rapaz, não havia redes sociais nem Internet, no entanto, transposta à lógica contemporânea, a jornada se identifica com a tentativa de combater as notícias falsas e a releitura asséptica dos crimes de guerra. Conforme John ganha acesso ao terreno de combate, graças a uma série hilária de quiproquós e mal-entendidos, começa a questionar suas pré-concepções. Descobre, deste modo, que “é mais fácil entrar na guerra do que sair dela”.

Neste sentido, quem sai vencedor da disputa de narrativa são os jornalistas, representados por Russell Crowe. Estes são os únicos personagens destituídos de ambiguidades morais e éticas: na trama, limitam-se a figuras destemidas e corajosas, lutando para disseminar a verdade contra a censura e as deturpações da Casa Branca. O discurso de Farrelly é claro: ele acusa os chefes da guerra, grandes políticos protegidos em seus edifícios muito distantes do Vietnã, enquanto deplora a guerra em si, e a ingenuidade dos garotos despreparados que foram enviados ao local. 

Assim, consegue unir democratas e republicanos minimamente liberais na proposta de que as invasões, tiroteios e bombardeios seriam equivocados não apenas em nível moral, mas também pela perversidade dos governantes que utilizam a repercussão para manipular a opinião pública. O longa-metragem mira a direita de Trump como a centro-direita de Biden, questionando o ideal salvacionista do país em geral. A união democrática do discurso consiste nesta descrença partilhada em relação a nossos representantes eleitos, estejam eles em qualquer lado ou espectro ideológico.

Ao invés de plantar respostas fáceis, ou vender um panfleto explicativo a respeito do que realmente ocorreu no Vietnã, Farrelly deseja plantar uma semente de dúvida, um pequeno início de senso crítico. Zac Efron se presta bem a este papel, representando uma vez mais o americano médio, musculoso e pouco inteligente (como havia feito em Baywatch, 2017, Os Caça-Noivas, 2016, Vizinhos 2, 2016 e Vizinhos, 2014), confrontado a uma realidade mais complexa do que imaginava. O ator tem se prestado às repetidas autoparódias, ou à desconstrução de sua própria figura, ao encarnar a falência de uma masculinidade padrão.

Por isso, The Greatest Beer Run Ever (no original) se torna progressivamente amargo, melancólico. O que se inicia como uma traquinagem, quase um stoner movie adaptado à cerveja, se converte num choque de realidade. Chickie presencia a morte brutal de americanos e vietnamitas; testemunha as mentiras de Estado e acolhe os amigos que o abraçam com um misto de afeto e incredulidade. Afinal, a lata de cerveja que viaja milhares de quilômetros soa como um presente e uma ofensa: é isso mesmo que vocês pensaram que nos ajudaria? Sob o fogo das metralhadoras, tudo de que os jovens precisavam era uma lata de cerveja? Há algo bastante amargo nesta desproporção e deslocamento de propósitos.

Esteticamente, Farrelly mantém-se impessoal, como de costume. A produção possui imagens polidas, um tanto acadêmicas, evitando chamar atenção aos enquadramentos ou movimentos de câmera. Aqui, o dispositivo pretende passar despercebido. No entanto, o cineasta e o montador Patrick J. Don Vito comprovam a habilidade para lidar com um humor agridoce, espécie de absurdo atenuado e próximo do realismo fantástico. A queda de um cadáver e a explosão de um carro representam a maneira etérea, próxima do sonho/pesadelo, com que o diretor enxerga as mortes.

Talvez esta opção soe atenuada demais para muitos espectadores, entretanto, seria inútil esperar uma denúncia assertiva e feroz por parte deste criador. Sua habilidade consiste em se comunicar com o público médio, através de ferramentas que lhe pareçam propensas ao feel good movie, apenas para dar uma rasteira, e revelar aspectos perversos por trás da rodada de cerveja entre amigos. O cineasta responde à doçura nociva e contraproducente de Green Book: O Guia com outra muito distinta, que começa a se abrir à existência do outro, ao fracasso do homem branco face à alteridade. O afeto está presente, assim como a diversão. Mas, neste caso, a ternura não adianta mais. 

Operação Cerveja (2022)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.