Em uma cena, Maria Alcina e Maria Alcina assistem a uma apresentação musical de Maria Alcina. Ou melhor, a cantora real, ao lado da atriz encarregada de interpretá-la, se deparam com imagens de arquivo, na televisão, da personagem jovem, entoando canções de seu repertório. Adiante, a Maria Alcina contemporânea, recriando o encontro com agentes da ditadura (encarnados por Ney Matogrosso), escuta o cantor libertário e libertino afirmar, em suas vestes de funcionário do DOPS: “Eu não gosto de artista”.
Os melhores momentos de Sem Vergonha decorrem destes instantes de loucura metalinguística, entre a ousadia e a traquinagem lúdica, propostas por Rafael Saar. O diretor, que já havia mergulhado numa linguagem semelhante em Peixe Abissal (2023), retoma a ideia de que a história de uma pessoa é composta tanto por fatos quanto por sonhos, delírios, invenções. Convida a personagem, portanto, para se tornar narradora da própria história. No entanto, a cantora mescla fatos com anedotas, desejos, especulações. Faz do filme um diário íntimo, para além de inventário fatual e comprovável.
Felizmente, a protagonista demonstra intimidade ímpar com a câmera e sua autoimagem. Ainda que os textos pareçam escritos demais, sobretudo no terço inicial, Alcina os apresenta com despojamento, em tom confessional e amigável. Ela aceita se vestir em variações dos figurinos exóticos de antigamente, interagindo com atores, cantores, dançarinos, em performances de estúdio voluntariamente não-naturalistas. Feliz encontro de sensibilidades: tanto o cineasta quanto sua personagem amam o artifício, o excesso, o kitsch, o queer. Por isso, brincam com esta versão da cantora, entre aquilo que é, e aquilo que poderia ser.
Maria Alcina se transforma num conceito de liberdade artística e feminina, uma maneira de estar no mundo. Há um gesto muito belo na escolha de minimizar reviravoltas e dados para se concentrar no riquíssimo universo psicológico da cantora.
Logo, o longa-metragem se encaixa numa acepção queer por sua estética — vide as cores, cenários, a paixão pelos figurinos e acessórios. Muitos filmes defendem a tarefa de “desvestir” os biografados, revelando aquilo que existiria por trás do imaginário, da maquiagem, da persona pública. O diretor, pelo contrário, admira em especial a personagem que Alcina criou para si mesma. Ao invés de desnudá-la, acrescenta camadas de plumas, paetês, maquiagens e brilhos.
Ao mesmo tempo, a imagem assumidamente queer se encontra com um retrato acanhado até demais sobre os afetos e sexualidade de Maria Alcina. Sem Vergonha concentra-se única e exclusivamente na carreira e no estilo extravagante da mulher de voz grossa. Deixa em segundo lugar a família, as amizades, os amores, o papel e a influência na música popular brasileira. Elabora-se uma obra queer a respeito de um ícone que navega pelas esferas LGBTQIA+ (Alcina está confirmada no próximo festival MixBrasil), mas cuja identidade permanece oculta ao público. Escolha estranha, em se tratando de uma mulher de poucas vaidades, com tamanha abertura para falar de seus sentimentos.
O recurso a uma atriz jovem, para encarnar Alcina no início da carreira, chama atenção pela liberdade de construção em termos de aparência e estilo — a intérprete nunca tenta copiar os trejeitos de Alcina, por exemplo. Ela se limita a uma evocação bastante livre, dividindo cenas com a cantora real. Neste momento, Saar sugere um afeto da protagonista por seu passado, uma maneira de demonstrar orgulho por tudo o que fez, num contentamento terno, avesso à afronta. Talvez a cantora de antigamente adorasse provocar. Hoje, ela demonstra mais empatia e menos furor. Pena que a montagem dispense a jovem atriz adiante, sem saber ao certo como utilizá-la na biografia.
Em paralelo, Sem Vergonha investe em diversos números musicais, convertendo-se praticamente num show de Maria Alcina. Ela canta várias canções com sua voz atual (além de uns raros lip syncs de gravações de décadas atrás, o que talvez provoque certo estranhamento). No entanto, todos os performers se prestam ao jogo de identidades, sexualidades e corporalidades alheias a qualquer tabu. É palpável a diversão e abertura à espontaneidade neste jogo cênico. Quando os atores se divertem e participam da criação, o senso de euforia é transmitido com facilidade ao espectador.
Quando se dedica a instantes mais roteirizados ou controlados, o resultado se enfraquece — vide as conversas em modo “eu sei, você também sabe”, quando os personagens compartilham um com o outro informações de que ambos dispõem, apenas para informar o espectador. “Você chegou no Rio, e a gente tinha a intenção de alugar…”. Melhores são as declarações autoconscientes da artista: “Meu corpo é o meu palco e meu cenário”, “As pessoas não sabiam muito o que fazer de mim”, “As pessoas achavam que ser feliz era um insulto”, “Eu me tornei uma cantora-operária”. Ao invés de se explicar, Alcina se indaga, se reflete, se contextualiza.
É uma pena que o projeto festivo e colorido se encerre com a pior das encenações. Maria Alcina surge com a pele bastante escurecida, talvez pela maquiagem, ou pela ausência de uma luz apropriada sobre sua pele — ou ambos. (Na sala de cinema, uma conhecida disparou: “Ih, olha lá o blackface”, despertando risos nervosos ao redor). A cantoria ora se desenvolve de modo sincronizado com o som, ora perde totalmente a relação com o movimento dos lábios. Não se trata da melhor maneira de encerrar uma obra tão polida, corajosa e criativa, nem o melhor número musical para se despedir do espectador.
Mesmo assim, Saar consegue captar Maria Alcina enquanto essência. Ela se transforma num conceito de liberdade artística e feminina, uma maneira de estar no mundo. Há um gesto muito belo, por parte do autor, na escolha de minimizar reviravoltas e dados (primeiro disco, primeiro fracasso, entrevistas famosas, etc.) para se concentrar no riquíssimo universo psicológico da cantora. O espectador se torna amigo de Alcina, um companheiro com quem ela divide pequenas emoções e grandes sonhos. Ao invés de permanecermos na plateia, observando-a ao longe, vemo-nos cúmplices, próximos, numa relação horizontal e acessível. O humanismo do autor reside neste olhar avesso às idealizações.