Ervas Secas (2023)

O misantropo

título original (ano)
Kuru Otlar Üstüne (2023)
país
Turquia, Alemanha, França
gênero
Drama
duração
197 minutos
direção
Nuri Bilge Ceylan
elenco
Deni̇z Celi̇loğlu, Merve Di̇zdar, Musab Eki̇ci̇, Ece Bağci, Erdem Şenocak, Yüksel Aksu, Müni̇r Can Ci̇ndoruk
visto em
Mostra de São Paulo 2023

O professor Samet (Deniz Celiloglu) acaba de voltar ao pequeno vilarejo onde trabalha com as turmas do Ensino Fundamental. Ele é obrigado a caminhar durante quilômetros sob a forte neve, o que indica a ausência de estrutura local de transporte. Passando em frente às casas, é acolhido com felicidade pelos moradores, que festejam o retorno do educador para o início do período escolar. Somos levados a acreditar, neste primeiro momento, que o protagonista constitui um sujeito amável e adorado por todos.

O diretor Nuri Bilge Ceylan demonstra prazer tanto em criar imagens preconcebidas quanto em destruí-las, cuidadosamente, com o caminhar da trama. Não demora até percebermos que o herói detesta este local retrógrado e provinciano, contando os dias para obter uma transferência. Ele ensina artes, embora demonstre interesse quase nulo por manifestações artísticas, e lida com as crianças sem qualquer afeto real — com exceção de uma garota, Sevim (Ece Bagci).

A menina sorridente e discretamente sedutora corresponde ao único motivo pelo qual o homem de mais de trinta anos exibe um sorriso nos lábios. Ele a observa de longe, entrega presentes em separado. A direção sugere a admiração do adulto pela adolescente, assim como indica a possível paixão da garota pelo professor. Desenha-se, por meio de rico trabalho de progressão e metáforas, uma infração de ordem moral. Este dilema se voltará contra o educador, com um peso considerável.

O longa-metragem se assemelha a um conto. Sugere uma falha estrutural grave na sociedade turca, que atravessa os protagonistas, mas não começa com eles, e nem terminará com o fim de suas jornadas.

Ervas Secas constitui uma fábula moral a respeito das relações de força entre diferentes gêneros e classes sociais no interior da Turquia contemporânea. Não por acaso, contrapõe um sujeito oriundo das grandes cidades ao pensamento conservador de uma comunidade patriarcal; a postura politicamente isenta de Samet à militância progressista de Nuray (Merev Dizdar); a pressão dos habitantes por casamento e filhos face à perspectiva de um caso de pedofilia.

Nenhum destes elementos adquire uma aparência chocante ou catastrófica. Em seus primeiros trabalhos, o autor costumava responsabilizar a estética por significar a gravidade e importância dos temas abordados. Por isso, enquanto crimes e dilemas se desenvolviam de modo linear, as nuvens ganhavam contornos apocalípticos, e as paisagens esmagavam os protagonistas. Aos poucos, acalmou tamanho formalismo, até chegar em suas obras contemporâneas, e mais interessantes, pois capazes de colocar o humanismo e a estética em pé de igualdade.

Assim, a beleza primorosa das imagens (a paisagem branquíssima da neve, o interior escuríssimo das casas e bares) se equilibra com a utilização de planos fixos, longos, enquadrados de modo que as atenções de voltem aos personagens centrais e suas conversas. Os diálogos servem de motor fundamental ao drama, ocupando a quase totalidade da experiência. Fala-se sem parar, seja entre homens e mulheres, professores e alunos, amigos e vizinhos. Entre trocas cotidianas e provocações habituais, surgem os dilemas éticos a serem trabalhados em seguida.

O longa-metragem se assemelha a um conto, pela maneira como administra distintas vontades e perspectivas sem encerrar o discurso com um objetivo preciso, ou mensagem clara. Ceylan jamais narra seu caldeirão humano para defender uma ideia, e sim para sugerir que a pluralidade de pontos de vista não possui uma única pessoa certa ou errada, alguém a quem adorar, e outro a que detestar. Os personagens se tornam as causas dos problemas uns dos outros, dispensando a chegada de dilemas externos (doenças, problemas vindos da cidade, etc.). Estima-se que este microcosmo possua uma riqueza mais que suficiente para desenvolver ao longo de 197 minutos.

A verborragia poderia soar entediante, caso não estivesse repleta de tensão. Conforme estes adultos se insultam educadamente, ou se provocam profissionalmente, desenha-se a possibilidade que terminem presos, ou atacando fisicamente uns aos outros. Cada troca verbal indica uma catástrofe iminente no horizonte, de gravidade imensa (a possível pedofilia, a briga entre dois melhores amigos, a violência do professor contra os alunos). Por isso, as falas preservam, em si mesmas, o teor de um conflito. 

Em outras palavras, o drama acena com frequência à possibilidade de se converter num suspense. A escolha de um protagonista detestável, capaz de um comportamento perverso e manipulador, torna a sessão ainda mais amarga. Embora ele jamais represente um vilão, Samet tampouco ilustra uma figura com quem se identificar, ou por quem torcer. Ceylan toma a precaução de não seguir a perspectiva de nenhum personagem em particular. Assim, estamos à mesma distância de todos, espantando-nos quando adotam atitudes chocantes.

Ervas Secas explora o máximo de possibilidades cênicas desta ciranda de personagens, isolados pela neve e desiludidos pela falta de perspectivas. Eles compram carros e falam em se mudar para Ancara ou Istambul, mas ninguém jamais sai dali. Funcionam enquanto microcosmo desta visão niilista da Turquia contemporânea, algo representado pela cena de conclusão, quando tudo e nada se resolve na vida do professor rancoroso. Algumas amizades se manterão, mas a qual preço?

O diretor chega ao ponto da carreira em que apresenta amplo domínio da estrutura, da construção das imagens e de seus objetivos. Pode estender a narrativa sem esgotá-la, preservando um bom ritmo, entre a contemplação e a tensão. Consegue construir personagens em textos ricamente roteirizados e ensaiados, embora sejam encenados com naturalidade exemplar. Fotografia, montagem, direção de arte e atuações convergem para a sugestão de uma falha estrutural grave, que atravessa os protagonistas, mas não começa com eles, e nem terminará com o fim de suas jornadas. O pesar destes retratos contamina o filme inteiro, e persegue o espectador muito após a sessão.

Ervas Secas (2023)
9
Nota 9/10

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