Entre as noites de 24 e 25 de novembro de 2024, a 11ª Mostra de Cinema de Gostoso (RN) apresentou ao público os oito curtas-metragens de sua mostra competitiva. Os títulos são bastante diversificados em origem geográfica, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, passando por Ceará, Pernambuco, Paraná, Bahia, Paraíba e Rio de Janeiro. Eles representam as novíssimas vozes do cinema brasileiro — os diretores e diretoras são bastante jovens, em sua ampla maioria.
Alguns filmes se destacam pela ousadia ou pelo aprimoramento estético. A animação Hoje Eu Só Volto Amanhã (PE), de Diego Lacerda, acompanha algumas horas do Carnaval, quando amigos se cruzam na folia. Múltiplas técnicas de animação são utilizadas: cada animador cuida de alguns segundos ou minutos de trama, aplicando seus traços e estilos particulares. Assim, a protagonista salta do desenho 2D ao 3D, às colagens, etc.
Na banda sonora, o cineasta incorpora conversas bastante naturalistas entre amigos, marcadas pela aparência de improviso. Além disso, enxerga a diversão pelo olhar subjetivo de inúmeros passantes da região, o que inclui um cachorro. O que poderia representar apenas um catálogo de diferentes formatos e estruturas da animação converte-se numa estética apropriada para captar o senso de libertação e dinamismo da experiência carnavalesca.
Chibo (RS) foi outro destaque positivo. Os cineastas Gabriela Poester e Henrique Lahude acompanham uma adolescente na fronteira entre o sul do Brasil e a Argentina. Em meio à rotina da fazenda, cuidando dos animais, ela reflete sobre as pessoas que se mudam para cidades maiores, ou mesmo para o país vizinho. Acompanha, em paralelo, o transporte clandestino de mercadorias pelo rio, chamado de “chibo”. A narrativa carrega uma doce melancolia, sem tomar partido de qualquer opção que se apresente à garota.
Em especial, mergulha numa fronteira interessante entre a ficção e o documentário. Os formatos híbridos não constituem nenhuma novidade no cinema brasileiro, porém, aqui, o espectador pode se questionar quais ações se produziam de maneira espontânea em frente às câmeras e quais delas foram estimuladas, criadas, roteirizadas. A naturalidade do dispositivo se confronta a um nível de controle da mise en scène típico das ficções.
No entanto, nem todos os projetos impressionam pelo uso da estética e pelas reflexões de linguagem. Determinadas obras representam aquilo que a crítica francesa convencionou chamar de “filmes de tema”, ou seja, obras movidas por uma questão social grave, urgente, de importante debate com o público. Trata-se dos projetos considerados popularmente como “urgentes”, “necessários”, ainda que tais termos constituam mero floreio retórico em uma argumentação crítica.
Sim, é fundamental discutir o racismo no Brasil. É importantíssimo evocar o direito dos povos indígenas; a luta por reconhecimento trabalhista das empregadas domésticas; a intolerância religiosa contra crenças de matriz africana. Estes debates podem acontecer tanto na arte quanto na militância, na mídia, nas escolas.
O problema, no que diz respeito ao cinema, encontra-se no como: de qual maneira estas questões são abordadas pelos filmes? Propõem a pensar, ou nos fornecem o ensinamento pronto? Buscam uma estética específica para dialogar com sua temática, ou acreditam que o interesse do conteúdo dispense maior cuidado com a forma? Em que medida a nobreza do tema, e a validade das intenções, desculpam ou minimizam o valor da linguagem cinematográfica?
Ora, a percepção de valor atribuída ao tema (“O filme não é muito bom, mas pelo menos fala sobre o racismo”, “O curta é fraco, mas ao menos traz uma mensagem importante”) desloca a qualidade para fora do cinema. Isso porque a discussão a respeito da luta indígena e dos direitos trabalhistas existe antes da arte, fora da arte, para além dela.
Se considero um projeto bom apenas por se confrontar a questões relevantes, então não preciso, a priori, nem sequer assistir ao filme. Se tomo conhecimento de que aborda tal aspecto (pela sinopse ou trailer, por exemplo), e se posiciona de maneira ideologicamente semelhante à minha, o filme é bom. No jargão da crítica de cinema, ele parte de três estrelinhas garantidas (sobre cinco). A qualidade estética se torna um bônus, um parêntese da avaliação.
No curta baiano Caluim (BA), de Marcos Alexandre, uma atriz negra é profundamente maltratada pelos colegas de trabalho de uma filmagem — todos eles brancos. O diretor fictício é grosseiro, impaciente com ela. A maquiadora e demais profissionais a tratam como um objeto. Ao encostarem em seu corpo, deixam manchas de pó branco sobre o cabelo e o corpo. Num corte da montagem, a situação mudou: o diretor do filme-dentro-do-filme agora é negro. O tratamento passa a ser cortês. A imagem do próprio curta-metragem se torna mais bela, polida. Problema resolvido.
Ninguém refuta que o meio do cinema seja, em sua esmagadora maioria, branco e burguês. As realizações por autores negros são minoritárias, conforme atestam os dados da Cinemateca Negra. Entretanto, o maniqueísmo da abordagem soa redutor: as vozes de pessoas brancas, fora de quadro, representam a opressão, enquanto o trabalho entre profissionais negros equivale ao acolhimento. Sim, mas como se passa de uma realidade à outra? De que maneira a mulher pode resistir, se impor, encontrar a tal filmagem tão gentil e atenciosa? Como reproduzir socialmente o corte mágico da montagem, em modo deus ex machina? Mistério.
O paraibano Axé Meu Amor (PB), de Thiago Costa, pensa no direito de crença dos adeptos do candomblé, em um Brasil tomado pela ascensão social e política das igrejas evangélicas e neopentecostais. Como enfrentar a intolerância? Na trama, uma mãe de santo confronta-se ao sobrinho ganancioso, decidido a vender a casa de herança familiar para um pastor. Ele grita “Na paz do senhor”, ao sair da casa irritado, ao qual a tia contesta: “Na paz de Oxóssi”.
A obra sofre com diversos problemas na fotografia (especialmente em espaços internos) e na captação de som, além de atuações fracas nas cenas mais roteirizadas (caso da briga citada acima). Divide seu roteiro em capítulos (“Recado”, “Rama”, “Ronda”), que parecem dispersar os sentidos e a compreensão, ao invés de canalizá-los. Acima de tudo, nos diz exatamente o que pensar, enquanto constata um problema: a confissão livre da umbanda e do candomblé é boa; a opressão evangélica é ruim. O preconceito existe.
A vontade de revelar uma verdade ao espectador, dizendo-lhe exatamente qual seria o caminho correto (sem refletir acerca das maneiras de chegar lá) se repete em Pequenas Insurreições (PR). No curta-metragem de William de Oliveira, quatro candidatas a babá discutem na antessala de uma casa, esperando pela entrevista de emprego com a possível patroa. Enquanto esperam, debatem os abusos sofridos em trabalhos anteriores: uma patroa não deixava comer a comida; outra a fazia fora das horas estipuladas.
Todas recebem salários muito baixos — e o diretor brinca de censurar o valor solicitado por elas, por ordem da mulher que coordena o processo seletivo. Assim, aplica um bipe sonoro, junto a uma caixa preta sobre a boca das atrizes. Por que a estética deveria se adequar às exigências do patrão, se pretende adotar o ponto de vista dos funcionários? Em pouquíssimo tempo, elas decidem se unir contra a exploração e recusar o emprego mal remunerado. Forma-se um sindicato espontâneo, uniforme, fabular e idealizado. Bastava todo mundo se unir, afinal — por que ninguém pensou nisso antes? A culpa da demora em obter avanços sociais recai, ironicamente, às próprias babás, desorganizadas até a epifania coletiva.
No intuito de abordar os direitos dos povos originários, o curta-metragem Yby Katu (RN), dirigido por Kaylany Cordeiro, Jessé Carlos, Ladivan Soares, Geyson Fernandes e Rodrigo Sena, prefere simplesmente falar a respeito. Uma garotinha indígena encontra-se na escola, onde a professora discursa, de maneira um tanto precária, a respeito do “Dia do índio”, parabenizando-a. Quando se liga a rádio, — adivinha? — a locutora discursa igualmente a respeito dos direitos indígenas.
A tendência a colocar na boca dos personagens tudo o que se quer dizer (na condição de exemplo ou antiexemplo) constitui um dos facilitadores menos instigantes do cinema político. Enquanto isso, uma trilha sonora grandiloquente ocupa a parte inicial; a direção de fotografia oferece uma imagem de baixo contraste, e o som recebe um tratamento excessivamente frágil, marcado por diversos problemas de captação e mixagem — a personagem parece bater no microfone, enquanto os ruídos invadem a banda sonora. Mas pelo menos a obra aborda uma temática importante, certo?
Em se tratando de cineastas jovens, é comum que experimentem com formas e recursos, testando os caminhos que funcionem melhor para suas abordagens pessoais. Eles parecem, em sua totalidade, bastante seguros sobre o quê querem dizer, mas não necessariamente sobre como fazê-lo. Diversas obras resultam didáticas, e quanto mais simplificam o discurso para informar o espectador (presumido ignorante, incapaz de compreender sutilezas ou ambiguidades), menos potentes se tornam. Ao invés de nos convidarem ao debate, vários curtas-metragens nos avisam quem está certo e quem está errado; qual problema percebem na atualidade; e como seria o mundo, uma vez corrigida a injustiça em questão.
É importante tomar precauções para que o “cinema de tema” não fagocite o cinema de pesquisa estética, cujo progressismo reside nas formas. Há diversas maneiras de defender as religiões de matriz africana e o povo negro com nuances (algo que o longa Kasa Branca faz muito bem), ou discutir o direito das mulheres e a opressão sistêmica por um viés complexo (em Manas). Os direitos trabalhistas também fogem ao certo-ou-errado no belo e intricado Tijolo por Tijolo.
Nesta edição da Mostra de Cinema de Gostoso, os longas-metragens apresentam um refinamento de linguagem e discurso ainda não alcançado por metade dos curtas-metragens da mostra competitiva. Estes últimos transparecem grande vontade de fazer cinema, de gritar um questionamento, de defender uma causa justa — e estas temáticas possuem todo o direito de ocupar os filmes. Falta refletir a respeito dos caminhos estéticos para elaborar tais denúncias. Quando a forma se torna secundária em relação ao conteúdo, o cinema se apequena.