Festival de Gramado: Os filmes que não premiamos (Balanço final)

Então deu Mussum, o Filmis. A comédia dirigida por Sílvio Guindane venceu o prêmio principal do 51º Festival de Gramado, liderando igualmente em número de Kikitos — seis, no total. Tia Virgínia, de Fábio Meira, e Mais Pesado É o Céu, de Petrus Cariry, também impressionaram com cinco e quatro troféus, respectivamente. 

A decisão do júri surpreendeu quem esperava pelo reconhecimento do drama estrelado por Vera Holtz, ou do suspense-melodrama com Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios nos papéis principais. Trata-se de formas de cinema bastante diferentes: a comédia segue à risca o padrão Globo Filmes, favorecendo uma estética televisiva e o apelo às emoções, enquanto perdoa Mussum por quaisquer falhas no passado. Já os dois outros projetos constituem dramas refinados, com sólido trabalho de imagem e som, do tipo que costuma compor a seleção dos grandes festivais brasileiros.

A escolha do júri por estes títulos pode soar incompatível. No entanto, ela reflete a indecisão que permeia a curadoria de longas-metragens em geral. As seis obras escolhidas para a competição nacional parecem integrar festivais diferentes. São todas legítimas e justificáveis em seus respectivos segmentos, no entanto, correspondem a lógicas distintas, quase opostas, de audiovisual. Angela e Mussum, o Filmis poderiam integrar um evento focado no público familiar. Tia Virgínia e Mais Pesado É o Céu não fariam feio nos festivais de Brasília, Cine Ceará e outros, voltados ao cinema autoral.

Vencedores do 51º Festival de Gramado. Foto: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

Ora, então que forma de cinema defende o Festival de Gramado? Se algo pode ser retirado desta edição, é a contradição permanente entre linguagens e discursos, ou entre intenção e realização. Os longas-metragens, mais conservadores, conquistaram uma resposta tímida de crítica, embora tenham garantido forte apelo ao público, devido à quantidade expressiva de estrelas no tapete vermelho (Isis Valverde, Grazi Massafera, Reynaldo Gianecchini, etc.). Os curtas-metragens, de linguagem arriscada e ousada, seguem uma linhagem próxima àquela encontrada em Tiradentes ou Olhar de Cinema — um nível altíssimo, diga-se de passagem.

No ano em que se optou por homenagear apenas as mulheres (Lucy Barreto, Alice Braga, Ingrid Guimarães, Laura Cardoso e Léa Garcia), venceu o único filme focado na história de um homem. Todos os demais traziam mulheres como protagonistas — ainda que fossem, com frequência, personagens femininas agredidas, caluniadas, perseguidas, estupradas e assassinadas. Na direção, estas histórias de mulheres eram contadas sobretudo por cineastas homens, com uma única exceção entre os longas-metragens: O Barulho da Noite, dirigido por Eva Pereira.

Venceu a história de um homem negro, dirigida por um cineasta negro, com elenco majoritariamente negro. Em contrapartida, o cineasta Zeca Brito relembrou nos palcos, enquanto apresentava Hamlet, que a curadoria permanece inteiramente branca, algo contestável em pleno 2023. Resgatou-se a mostra de documentários, apenas para deixá-los numa seção pouco prestigiada, sem direito a prêmios de crítica, nem de público. Os longas gaúchos concorreram a uma porção de Kikitos. Já os documentários nacionais concorreram a um troféu só.

Aílton Graça e Vera Holtz com seus Kikitos de melhor ator e atriz. Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

Mesmo entre os documentários, sejam nacionais ou gaúchos, a diferença de qualidade e linguagem era gritante. Ao fazer uso de vasto material de arquivo, confrontando pessoas às imagens efetuadas sobre si próprias vinte anos atrás, Memórias da Chuva apresentou uma proposta instigante. No entanto, ele se opõe aos comportados Luis Fernando Veríssimo – O Filme, Sobreviventes do Pampa, Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre e Da Porta pra Fora, dependentes da lógica dos talking heads, e próximos da reportagem televisiva. 

A existência de propostas híbridas entre o documentário e a ficção, caso de Hamlet, comprova que a divisão entre ficções e documentários, privilegiando as primeiras aos segundos, tampouco se adequa aos novos tempos. É certo que Gramado sofreu com cortes orçamentários este ano, e mesmo assim, conseguiu apresentar um evento de porte impressionante. No entanto, a organização curatorial e a divisão entre mostras pode ser repensada, sobretudo no intuito de valorizar os documentários.

Para diversos críticos de cinema, a vitória de Mussum, o Filmis seria decorrente da vontade de premiar a obra de artistas negros. Alguns apontaram que esta seria a oportunidade de recompensar uma raríssima comédia popular, valorizando-a em detrimento dos filmes mais “sérios”, e normalmente privilegiados por júris de festivais. Em 2022, ganhou o cinema “sério”, autoral e arriscado de Noites Alienígenas, de Sérgio Carvalho. Este ano, deu o humor televisivo, embora houvesse alguns “Noites Alienígenas” disponíveis para premiar. 

Ingrid Guimarães, Laura Cardoso e Alice Braga. Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

Esta seria uma marca de alternância de poder? Uma tentativa de equilibrar as duas formas de cinema, puxando para ambos os lados? Talvez este seja o traço autoral de Gramado, colocando em pé de igualdade as cinebiografias populares e as propostas formatadas, equivalendo-as. Ao invés de defender uma forma de cinema em detrimento de outra, a exemplo da maioria dos festivais, abraça-se tudo. 

Segundo essa lógica, uma produção Globo Filmes, com orçamento considerável, mereceria a mesma atenção da pequena produção de Tocantins. O discurso que enfrenta convenções da família patriarcal (Tia Virgínia) teria valor equivalente àquele em que o homem abandona o filho e a esposa, sendo desculpado por isso (Mussum, o Filmis). Um drama que observa a violência conjugal de modo fetichista e erotizado (Angela) merece o palco do Palácio dos Festivais tanto quanto o drama que acusa esta mesma exploração, evitando qualquer sensualidade do corpo feminino (Mais Pesado É o Céu).

Adora-se o cinema político e o cinema escapista; as histórias que enfrentam os problemas da realidade e outras, para as quais basta sonhar e nunca desistir dos seus sonhos (vide o discurso de conclusão da comédia brasileira). A direita e a esquerda, o engajamento e a alienação, acima e abaixo, o cinema do rigor e o cinema das boas intenções. São todos ótimos. “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”, dizia Raul Seixas. Após os governos de coalização, os festivais de coalização.

O Barulho da Noite, de Eva Pereira

No entanto, a principal mensagem enviada pelo júri oficial não diz respeito à importância dos criadores negros, nem à necessidade de recompensar comédias. Tendo inúmeros prêmios à disposição, o júri composto por Elena Soarez, Catalina Apolonio, Letícia Colin, Fabrício Boliveira e Cristiano Burlan preferiu recompensar apenas três filmes. Multiplicou as menções honrosas e prêmios especiais do júri, apenas para entregar mais Kikitos às mesmas obras: Mussum, o Filmis, Tia Virgínia e Mais Pesado é o Céu.

No total, a trinca somou quinze estatuetas. Já Angela, O Barulho da Noite e Uma Família Feliz saíram de mãos abanando. Nem um troféu de consolação, nada. Esta, sem dúvida, é a mensagem mais forte enviada pelos jurados: para eles, metade da competição oficial não era digna de prêmios. A concentração de troféus costuma apontar a um recado, mais ou menos velado, quanto ao (des)nível de uma seleção: os avaliadores, neste caso, não gostaram de 50% da mostra competitiva. 

Isso deveria fazer o festival de coalização, o festival da alternância de poder, pensar bem em suas escolhas. Afinal, os curtas-metragens traziam múltiplas opções para prêmios: Cama Vazia, Casa de Bonecas, Camaco, Pássaro Memória, Mãri Hi: A Árvore do Sonho, Sabão Líquido, Yãmî Yah-Pá: Fim da Noite e tantos outros eram digníssimos de todos os prêmios que lhes pudessem atribuir. O júri oficial, neste caso, distribuiu sua premiação entre múltiplas obras de alto nível, a ponto de deixarem de lado filmes muito bons, como Pássaro Memória, para priorizar outros títulos.

Casa de Bonecas, de George Pedrosa

O saldo da 51ª edição foi positivo. Os organizadores precisaram lidar com inúmeros problemas, e mesmo uma tragédia, diante do falecimento de Léa Garcia em pleno festival, no dia em que seria homenageada. Saíram-se bem, agindo de maneira ágil e respeitosa. Enfrentaram pequenos problemas de comunicação, e garantiram que mesmo as falhas técnicas (vide o problema na exibição de Hamlet) pudessem ser compensadas a tempo. Não é uma tarefa fácil. Além disso, driblaram um corte orçamentário que privou o público local das obras latino-americanas, porém não limitou o impacto, nem a importância do evento.

Gramado segue forte, ainda que alguns sinais de alerta pisquem no horizonte. Para o evento de tamanho prestígio, capaz de trazer qualquer obra inédita brasileira de sua escolha, cabe pensar na forma de cinema que deseja priorizar, defender, valorizar e ver crescer nos anos seguintes. Pouca coisa une Mussum, o Filmis aos ótimos vencedores anteriores: Noites Alienígenas (2022), Carro Rei (2021), King Kong en Asunción (2020) e Pacarrete (2019). 

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