Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

Festival de Gramado: Todo mundo tem uma tia assim (Dia 2)

Depois de uma primeira noite de altos e baixos no 51º Festival de Gramado, a segunda noite de mostra competitiva trouxe um nível mais coeso ao Palácio dos Festivais. Reuniram-se os dois curtas-metragens de Minas Gerais na mesma sessão: A Última Vez que Ouvi Deus Chorar, de Marco Antônio Pereira, e Camaco, de Breno Alvarenga. Em comum, os filmes mergulham nas paisagens do campo para extraírem uma crítica à herança nociva dos tempos de exploração de corpos e culturas.

Em A Última vez que Ouvi Deus Chorar, o cineasta imagina a gravidez de uma adolescente que efetua trabalhos forçados na lavoura. Apesar do estágio avançado de gestação, ela mantém os esforços para arcar com os custos do parto. No entanto, o sacrifício se converte em martírio. A obra prefere representar a opressão feminina através de metáforas, ao invés de filmá-la com a crueza da realidade. Isso significa o encontro com luzes divinas e o parto de um pedaço de madeira (ou seria uma pedra?).

A Última Vez que Ouvi Deus Chorar, de Marco Antônio Pereira

As experimentações vão muito além. O autor trabalha com imagens negativas (invertendo a luz e a polaridade das cores), flashes repetidos de animais sendo alvejados e mortos, além de outras inserções que contribuem a um imaginário da agressividade contra a natureza (humana e animal), sem necessariamente costurar a narrativa em moldes clássicos. No final, a aventura parece ter soado confusa à plateia, que emitiu aplausos discretos. 

Mesmo assim, é saudável e importante que um festival como Gramado, em busca de abraçar formas tão diferentes de cinema (do mais televisivo à cinematografia rebuscada, do popular ao erudito, do acessível ao hermético), exiba iniciativas como esta. O projeto mineiro tem seu lugar na edição, confirmando a bela ousadia da curadoria de curtas-metragens.

Camaco propõe uma releitura livre dos cânones do documentário clássico. Ao invés dos simples talking heads, ou seja, as cabeças falantes explicando algum tema ao espectador, o diretor Breno Alvarenga intercala a fala de especialistas de Itabira, sobre o dialeto local Camaco, com reportagens estrangeiras e imagens de ontem e de hoje. As entrevistas se sucedem entre a noite e o dia, num espaço único e vazio, enquanto as vozes são sobrepostas à captação de homens nas minas.

Camaco, de Breno Alvarenga

Assim, ele reúne de maneira orgânica o passado e o presente, apresentando longos trechos de narrativa em dialeto Camaco (que consiste em intercalar as primeiras consoantes das palavras, evitando a compreensão dos exploradores locais). O curta revela de que maneira a língua pode constituir uma ferramenta política, o que lhe permite dialogar com a política exploradora e colonialista através das formas de resistência, ao invés de apenas lamentar as desigualdades. O roteiro se mostra mais incisivo do que pode aparentar pela simplicidade do conceito.

Mas o foco da noite se encontrou em Tia Virgínia, longa-metragem dirigido por Fábio Meira (de As Duas Irenes). A sessão se iniciou com um pequeno mal-entendido: o cineasta e sua equipe foram chamados ao palco para apresentarem o filme, mas ainda não se encontravam no cinema. A apresentadora Renata Boldrini se saiu muito bem diante da saia justa, improvisando e dialogando com o público enquanto esperavam. No entanto, a organização se mostrou falha ao enviar uma pessoa no palco, interrompendo a mestre de cerimônias, no intuito de pedi-la para “enrolar”, algo que ela já vinha fazendo há mais de dez minutos.

Passado o deslize, Vera Holtz subiu ao palco e rapidamente dissipou qualquer mal-estar. Sempre educada e acessível, puxou o coro para a comédia dramática, voltada ao reencontro entre três irmãs na véspera do Natal (em um tempo e localidade indefinidos, diga-se de passagem). Juntas novamente na casa familiar, elas trocam farpas e resgatam desavenças, o que inclui problemas financeiros, os cuidados da mãe de 99 anos, casos de agressão no passado, abuso sexual e outros temas. O roteiro corre para transformar um único dia num caldeirão de enfrentamentos.

Tia Virgínia, de Fábio Meira

Para o público, é um deleite assistir a atrizes do calibre de Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso se enfrentando em cena, a partir de bons diálogos. As atrizes se divertem com as interações que vão do cômico ao grave, do dramático ao melodramático. O cinema brasileiro se ressente da falta de obras protagonizadas por mulheres acima dos 60 anos, de modo que o drama despertou uma confortável sensação de familiaridade. Na saída da sessão, as conversas nos corredores eram muito semelhantes: “Ela é igualzinha à minha mãe!”, “Nossa, eu tenho uma tia idêntica à Vanda, mas a minha mãe é a cara da Valquíria”. 

O diretor comprova o talento de cronista, observando o cotidiano e retirando pequenos aspectos comuns à convivência tumultuosa de uma família de classe média (a briga pelas taças chiques, a discussão sobre colocar passas no arroz). É certo que, rumo ao clímax, as brigas se intensificam ao nível próximo do novelesco, acumulando conflitos em excesso. A trilha sonora de um piano impessoal tampouco contribui ao humanismo sóbrio da narrativa. Felizmente, a conclusão afasta as más impressões e amarra muito bem a bela história de mulheres, que também conta com atuações memoráveis de Daniela Fontan e Amanda Lyra.

A noite se encerrou com a impressão de termos visto um longa-metragem que certamente entrará na disputa pelos prêmios principais. Os Kikitos de melhor atriz e melhor roteiro soam como fortes possibilidades, mas quem sabe a melhor direção de arte (a casa se torna um personagem fundamental, com seus objetos e tapeçarias) e mesmo melhor filme. Veremos.

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