Da Porta pra Fora (2023)

Motoboy mixtape

título original (ano)
Da Porta pra Fora (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
84 minutos
direção
Thiago Foresti
com
Alessandro da Conceição, Keliane Alves, Marcos Nunes
visto em
Festival de Gramado 2023

É provável que qualquer espectador percebesse, em poucos minutos de projeção, os objetivos dos criadores com este projeto. Da Porta pra Fora acompanha os motoboys durante o início da pandemia de Covid-19, expondo-se ao risco nas ruas para garantir o sustento das famílias. Não restam dúvidas de que o cineasta Thiago Foresti se posiciona junto a estes profissionais, e contra as grandes empresas de aplicativo que exploram o trabalho a baixo custo.

Mesmo assim, os letreiros iniciais transmitem uma sinceridade e um didatismo inesperados: a obra revela suas intenções (denunciar a exploração dos gigantes do delivery), e explica a decisão de não citar nominalmente marcas como Uber Eats, iFood, Rappi, Loggi por medo de represália judicial. Logo, marcas são desfocadas na imagem, enquanto se suprime as menções sonoras com o mesmo “bip” utilizado para esconder um palavrão — escolha curiosa, aliás. “Eis o que eu queria mostrar, e taí os motivos pelos quais não mostro determinadas coisas”, parece nos dizer o filme. Como são estranhas as narrativas que começam com um manual de instruções.

Passados os avisos iniciais, as escolhas estéticas saltam aos olhos muito antes de se perceber a trinca de personagens. A montagem profundamente intervencionista de Daniel Sena se apropria do material bruto enquanto mera argila com a qual pode fabricar a escultura de sua preferência. Por isso, ele intercala cenas aceleradas, em câmera lenta, sobreposições, imagens em preto e branco com pontos coloridos, imagens saturadas (com filtro HDR?), efeitos digitais de chuva e raio, etc. A edição e a pós-produção se divertem com a possibilidade de executar tudo e qualquer coisa.

Distorce-se o som, a imagem, a perspectiva, a profundidade de campo. O resultado se condiciona à estrutura das redes sociais e à velocidade da Internet.

Ela chega perto de uma liberdade inconsequente e aleatória nas escolhas de linguagem ao misturar cenas contemplativas, em câmera fixa, e os deslocamentos frenéticos dos motoboys. Utiliza-se objetivas normais, grandes angulares “comuns” e outras ao nível do olho de peixe. Distorce-se o som, a imagem, a perspectiva, a profundidade de campo. A trilha sonora oferece música atrás de música, temendo o silêncio, ou a reflexão decorrente dele. Na busca de uma provável imersão do espectador, oferece uma obra pop, agitada, preocupada em agradar ao público amplo.

Por isso, o resultado se condiciona à estrutura das redes sociais e à velocidade da Internet. No meio da crítica de cinema, rotular uma obra de “cinema TikTok” tem se tornado uma muleta fácil para desqualificar as iniciativas fragmentadas e aceleradas. No entanto, o termo se justifica diante de projetos que privilegiam o apelo ao público em detrimento da capacidade de articulação de ideias e conceitos. O cinema-sensação, ou cinema-espetáculo, encontra seu habitat natural nas mídias virtuais. Da Porta pra Fora visa constituir, guardadas as proporções, um blockbuster documentário.

O diretor escolhe três personagens complexos para representarem a classe trabalhadora de motoboys no Distrito Federal. Alessandro da Conceição, Keliane Alves e Marcos Nunes expõem com humildade e franqueza sua vida familiar e afetiva (com o devido respeito à privacidade), a interação com os amigos, os posicionamentos distintos a respeito da pandemia de Covid-19. Confessam seus sonhos, traumas e o prazer de trabalharem pelas ruas. 

O trio se expressa com clareza, sobretudo através das imagens captadas por si próprios. O recurso se justifica não apenas por medidas sanitárias (reduzindo o contato da equipe com os personagens), mas pela vontade de registrar a maneira como os protagonistas enxergam a si mesmos, e quais aspectos de sua rotina eles pretendem valorizar. A época da autoimagem, de produção via telefone celular e captação móvel, favorece esta forma de cinema-testemunho enquanto sintoma de uma época. O dispositivo permite, igualmente, aprofundar a noção de protagonismo oferecida a indivíduos invisibilizados socialmente.

Thiago Foresti procura aprofundar relações ideológicas ao questioná-los a respeito do apoio ou rejeição a Jair Bolsonaro pela gestão da crise do coronavírus. Assim, reflete a evolução de pensamentos e a tendência de alguns segmentos desfavorecidos em apoiar as medidas liberais (para dizer o mínimo) do ex-presidente. Estas abordagens soam um tanto abruptas — tão acessórias quanto as conversas de grupo de WhatsApp materializadas na tela —, porém revelam as ambições sociológicas do autor.

No entanto, o resultado carece de cadência e ritmo (o que se difere de aceleração). A sequência de “Deus é Deus” se estende excessivamente, já a confissão de Keliane a respeito do sonho em se tornar cantora se torna repetitiva. A divisão da narrativa em meses da pandemia (abril de 2020, maio de 2020, etc.) pouco favorece a compreensão do aprofundamento dos riscos, ou a degradação das leis trabalhistas. 

Os efeitos do vírus, em si, aparecem raramente, assim como as medidas sanitárias. O foco permanece indefinido entre os riscos face ao vírus e a exploração trabalhista por multinacionais. Mesmo que não cite o nome das empresas, o roteiro poderia se aprofundar nas práticas dessa relação laboral abusiva, em termos de horas, valor inicial, taxa repassada aos motoboys, etc. O roteiro promete se focar nas questões legislativas e trabalhistas, para então abordá-las de maneira vaga — as menções a demandas específicas surgem esparsamente, durante os breques da categoria.

Por fim, Da Porta pra Fora resultaria numa obra mais madura caso permitisse ao resultado respirar. Havia material suficiente de discussão e diálogo, sem a necessidade de maquiá-lo com inúmeras canções, cortes e filtros. A decoração opressora das imagens chama tamanha atenção a si própria que rouba o protagonismo dos três personagens centrais e atenua o humanismo da obra. As pretensões políticas do autor casam mal com a linguagem sensacionalista.

Da Porta pra Fora (2023)
4
Nota 4/10

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