Festival de Gramado: Imaginários do sertão (Dia 3)

Após a noite de obras mineiras, voltadas à cultura e à preservação do patrimônio, o 51º Festival de Cinema de Gramado teve uma terceira noite de mostras competitivas marcada por longas e curtas-metragens que exploram um novo imaginário do sertão. Este espaço, que já foi romantizado e idealizado ao longo de décadas de filmografia brasileira, e então minimizado pela atual geração em prol de espaços urbanos, teve uma noite de diálogos férteis.

O longa-metragem Mais Pesado É o Céu, de Petrus Cariry, imagina duas pessoas miseráveis numa paisagem infinita e sem escapatórias. Antônio (Matheus Nachtergaele) está em deslocamento entre diferentes estados brasileiros. Não possui familiares, amores, nem qualquer tipo de amarra em cidade alguma. Declara a intenção de enriquecer com a criação de caranguejos, mas sua fala possui pouca firmeza. Teresa (Ana Luiza Rios) também retorna a Jaguaribara (CE), onde nasceu, em busca de algo que lhe dê sentido. O destino a presenteia com um bebê abandonado pelo caminho. Ela o toma por seu, afirmando publicamente ser a mãe do menino.

A premissa parte, portanto, do realismo fantástico. Apesar da estrutura clássica de um drama de personagens, com aceno ao romance redentor, o cinema de gênero paira no horizonte: a fantasia, decorrente da figura do bebê e dos encontros improváveis (a união conveniente entre os dois, formando uma “família tradicional” de pai, mãe e filho, mesmo que simbólica), e o suspense com toques de terror, pela insistência na presença de um assassino em série rondando a região. O roteiro insiste que ambos podem encontrar o amor ou a morte a qualquer instante — tanto o final feliz quanto o desfecho trágico se anunciam no horizonte.

Mais Pesado É o Céu, de Petrus Cariry

Esta indefinição de tons e propósitos prejudica o resultado. As falas um tanto explicativas, antecipando a aproximação dos dois (em especial da boca de Fátima, a amiga e ajudante) se misturam a diálogos pouco comuns no registro oral, quando Teresa confessa que “prosperidade” não faz parte de seu vocabulário, por exemplo. Estas investidas seriam pertinentes numa obra assumidamente antinaturalista, no entanto, Petrus Cariry ainda apoia sua narrativa nas ferramentas do realismo social.

Já Antônio soa ora passivo demais, ora um tanto vazio em cena, sem desejos ou propósitos definidos para guiá-lo. Até por isso, a forte cena de conclusão soa incompatível com a descrição do personagem até então. Caso a reviravolta do desfecho ocorresse no meio da trama, e as imagens seguissem a consequência dos atos na vida da dupla, talvez se compreendesse melhor o casamento entre o melodrama e o cinema de gênero. Na última cena se encontra a força que se esperava da obra composta por pequenas sugestões. Quem dera a mesma verve houvesse contaminado a trama adocicada sobre a redenção da miséria pelo afeto. 

Jaguaribara também constitui o cenário central de Memórias da Chuva, de Wolney Oliveira. O documentário retraça a história desta cearense, evacuada e inundada para a construção do Açude Castanhão. Mas como um governo pode decretar a morte de um município? Como lidar com a memória afetiva, e também o direito patrimonial, de milhares de pessoas criadas neste território há gerações? O projeto une o humanismo à denúncia contra as políticas eleitoreiras que, no final, pouco contribuíram ao desenvolvimento da região.

O filme se apoia em vasto material de arquivo, em especial aquele filmado pelos próprios habitantes, quando se confirmaram os planos da barragem. Passaram então a registrar a sua vida, no intuito de imortalizarem os cidadãos e seus costumes às novas gerações. O diretor busca os personagens de vinte anos atrás para confrontar as esperanças de antes à reflexão crítica e distanciada de hoje. Eles combinam, assim, as emoções, o engajamento pelas indenizações e o questionamento a respeito do direito à memória. Leia a nossa crítica.

É interessante pensar que, caso os programadores tivessem invertido a ordem das sessões (primeiro o documentário, depois a ficção), talvez olhássemos para a Jaguaribara de Cariry com outros olhos, além de uma carga afetiva suplementar. De qualquer modo, formam uma rara e excelente sessão dupla: quantas vezes se tem o privilégio de assistir a uma ficção e um documentário situados no mesmo cenário, a partir de uma única tragédia ecológica e social?

A exploração dos corpos e dos trabalhadores também se transmite em Sabão Líquido, curta-metragem gaúcho de Fernanda Reis e Gabriel Faccini. Os diretores acompanham alguns dias na vida de um jovem estrangeiro, trazido ilegalmente ao sul do Brasil para fazer sabão líquido em meio à floresta. O roteiro questiona o trabalho análogo à escravidão e a rede responsável por sustentá-lo, desde os atravessadores até os consumidores do produto falsificado. 

Sabão Líquido, de Fernanda Reis e Gabriel Faccini

O que mais impressiona na iniciativa é a atenção ao tempo e ao cotidiano. Nota-se uma rara e bem-vinda disposição a acompanhar o dia a dia do homem silencioso lavando as roupas, dançando ao som de uma música na rádio, limpando o trailer onde permanece, e trabalhando na fabricação do produto. Os autores oferecem uma observação atenta, em bom ritmo, evitando qualquer senso de espetáculo diante da dor deste homem. Ele nunca será tratado como pobre vítima, nem herói de uma causa. Resta praticamente anônimo, do início ao fim.

No entanto, é justamente no final que a jornada se enfraquece. O realismo cede espaço a um desfecho acessório e exemplar, quando o rapaz apenas parte quando deseja, na hora que lhe convém, sem prestar contas do trabalho, nem encarar mais uma vez os “patrões”. Fica a estranha impressão de que o ofício ilegal constituía mero biscate, do qual ele podia sair quando lhe desse vontade — algo muito diferente da prática real do trabalho escravo. A decisão de terminar o curta-metragem no percurso do sabão, ao invés do protagonista, favorece o cinismo (vide a menção explícita à chegada do bolsonarismo), mas perde em humanismo.

Talvez o principal questionamento da noite diga respeito ao retrato do sofrimento e da miséria alheia. Para não explorar a dor dos outros, nem oferecê-la como direção ao espectador, alguns criadores terminam por elaborar obras doces e romantizadas, como se a pobreza pudesse ser superada pelo amor (Mais Pesado É o Céu), pela vontade própria, em chave meritocrática (Sabão Líquido) ou pela educação transformadora (caso da animação Jussara, tão bela quanto inocente). Haveria maneiras interessantes de representar uma situação violenta sem abdicar da poesia, nem da leveza tão procurada por estes autores. 

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