Ocasionalmente, algum detrator do cinema brasileiro pergunta por que nossos artistas não fazem filmes de ação com super-heróis, lutas e perseguições, ao invés dos habituais dramas e comédias. Assim, superariam a Warner e a Disney. Ora, a brilhante ideia esbarra em dificuldades básicas: não temos dinheiro para tais empreitadas. Estes filmes são caríssimos — produções do nível de Os Vingadores custam cerca de US$ 250 milhões, além dos gastos suplementares de marketing, que atingem 50% dos custos de realização. Nossos profissionais teriam o conhecimento e a capacidade para tal, sem dúvida. Mas faltam os recursos.
Por isso, a chegada de um filme brasileiro de super-herói aos cinemas desperta curiosidade. Manual do Herói não representa o primeiro longa-metragem nacional deste filão, como alguns têm alardeado — recentemente, o circuito comercial recebeu O Doutrinador, por exemplo. Tampouco constitui uma variação infantil, do tipo concebido com frequência para televisão e a Internet (Luccas Neto possui seus próprios filmes de herói, alcançando um sucesso não-negligenciável). Mesmo assim, a produção brasiliense representa um caso raríssimo. Ela se torna ainda mais excepcional por se tratar de uma criação independente, ao invés dos exemplares acima, muito mais endinheirados.
O diretor Fáuston da Silva consegue escapar a dois riscos frequentes nestes casos. O primeiro deles seria o perigo de abraçar uma proposta de produção maior do que o orçamento comportaria. Roteiros de Homem-Aranha e equivalentes norte-americanos jamais entrariam nas contas brasileiras. É necessário, portanto, se adequar. O segundo perigo residiria em fechar os olhos às deficiências evidentes, torcendo pela clemência de críticos e espectadores, por se tratar de uma produção pequena. (Alguns criadores ainda estimam que ser tratados como café-com-leite no circuito comercial represente uma forma de respeito).
Fáuston da Silva domina os códigos das HQs e do cinema de ação. Isso significa não apenas amar suas reviravoltas e convenções, mas ter consciência de como reproduzi-las esteticamente.
Ora, esta comédia juvenil possui exata medida de onde pode chegar. Sabe tirar o melhor proveito de um drone para a cena de perseguição, consegue sugerir diferentes espaços ao mudar a cor das luzes, e imprimir dinamismo ao dividir e multiplicar as telas, por exemplo. Entende a importância da trilha sonora na construção de tensão, e dirige com competência os atores experientes para encarnarem vilões maniqueístas (afinal, trata-se de uma produção admiradora do referencial norte-americano), porém, sem exagerar nos traços ao limite da ludicidade infantil.
Em especial, Silva domina os códigos das HQs e do cinema de ação. Isso significa não apenas amar suas reviravoltas e convenções, mas ter consciência de como reproduzi-las esteticamente. Ele entende o uso da narração confessional em primeira pessoa ao abrir o filme, a importância de dividir o aprendizado do jovem herói em diferentes etapas, e de reproduzir uma sequência de treinamento à la Rocky, um Lutador. Entende que o conflito de Agnus (Eduardo Ydiriuá) face aos adversários deve ocorrer em ordem de periculosidade do inimigo, até lutar contra o chefão no clímax e receber, como recompensa, o afeto da mocinha.
Mas estes seriam clichês desgastados do gênero, não? Sem dúvida. O longa-metragem nunca visa romper com suas obras amadas, nem mesmo encontrar equivalentes específicos para todas as referências culturais estrangeiras. Ele efetua uma ou outra incorporação ao Brasil de XXI (uma das heroínas, em papel pequeno, é uma garota indígena), porém, ainda sustenta a vitória do herói enquanto prova de masculinidade. Em paralelo, a garota precisa ser salva pela coragem do rapaz, e o político vilanesco carrega no corpo uma marca indelével de sua maldade (enquanto outra adversária ostenta o habitual sotaque estrangeiro). Sim, as garotas negras são fortes e destemidas, entretanto, o foco permanece na figura masculina. Na conclusão, a principal personagem feminina é reduzida ao “par romântico”, ou “interesse amoroso”.
Manual do Herói busca se equilibrar a todo instante entre o imaginário gringo e a realidade brasileira; entre o ponto de vista misógino de décadas atrás e as demandas progressistas e de representatividade atuais. Ensinamentos moralistas nada profundos (“Por que vocês se rendem ao mal?”) podem despertar sorrisos, apesar da autoconsciência quanto ao anacronismo do recurso. Os diálogos, com adolescentes afirmando que caminharam “por profundas trevas”, soam incompatíveis com jovens verossímeis da atualidade.
Ora, a exemplo de seus códigos e mitologias internas — incluindo termos como “coração de prata”, “nível de conexão”, “canção de baleia” e “duobasilato” —, a narrativa assume certo nível de absurdo e incongruência pelo simples direito de fazê-lo. Não apenas os personagens se mostram ocasionalmente juvenis e imaturos; a direção também assume esta rebeldia adolescente de apontar, inclusive, a caminhos improváveis enquanto liberdade de expressão. A carência de atualizações sociais suplementares também deriva deste senso de inconsequência.
O resultado pode ser questionado por certas carências ou fraquezas. As lutas possuem desempenho desigual: algumas cenas transbordam agilidade, enquanto outras trazem coreografias lentas demais. Fica a sensação de que a montagem precisaria de interações mais decupadas para acelerar a velocidade de chutes, socos e recuperações. Em paralelo, as conversas de Agnus com a mãe proporcionam os instantes mais fracos do projeto, seja pela atuação pouco expressiva da atriz, seja por decisões abruptas da matriarca (cuja motivação, revelada mais tarde, não justifica por completo alguns gestos em relação ao filho).
Ressalvas à parte, o saldo se mostra bastante positivo. É normal, em um terreno tão pouco explorado, encontrar alguns acidentes de percurso. Mesmo assim, embora Manual do Herói não seja nossa primeira obra de super-herói, ela é certamente a melhor até agora. A utilização satisfatória dos efeitos visuais; a representação respeitosa, mas também despojada da juventude; e o senso de diversão a partir destes pressupostos fez com que as centenas de pessoas no Cine Brasília saíssem da sessão com um largo sorriso no rosto. Os criadores certamente se divertiram com este trabalho, e este prazer chega ao espectador.