Em Batguano (2014), Batma (Everaldo Pontes) e Roben (o diretor Tavinho Teixeira) se deparavam com uma pandemia mundial. O casal fugia rumo a novos planetas, enquanto enfrentava dilemas de um relacionamento desgastado. A comédia independente transbordava de empolgação, graças às piadas metalinguísticas com o cinema caseiro de super-heróis. Em paralelo, abria espaço para a intimidade e para o sexo (explícito, inclusive). Em outras palavras, um filme que abraçava o gozo e o prazer. Para a dupla, a estrada soava como um universo de possibilidades.
Onze anos se passaram e, neste período, uma pandemia chegou, de fato, ao mundo inteiro. Levou consigo o pai e a mãe do cineasta, ambos idosos, esperando pela vacinação que o então presidente, Jair Bolsonaro, boicotou o quanto pôde. Agora, movido pela tristeza e pela indignação, o diretor retoma os personagens de antigamente, numa trama que imagina o “Ano da peste nº 11”, quando ainda se luta contra o vírus. Apesar de metáforas iniciais, o roteiro logo aponta o dedo aos culpados: Jair Bolsonaro, sua fala sobre a “gripezinha”, a turma da “rachadinha”, etc.
Nos palcos, enquanto apresentava o filme na Mostra de Tiradentes, Teixeira mencionou abertamente a perda dos pais, manifestando sua indignação por estas e tantas outras vidas que poderiam ser poupadas. Ele abre o projeto com sua própria imagem dirigindo, ao lado dos pais idosos. Duas pessoas no banco de trás têm o rosto desfocado digitalmente. O filme começa com uma espécie de homenagem, incluindo materiais reais, que a maioria dos dramas reservaria ao final da narrativa. Insiste, assim, que nossa leitura das aventuras de Roben seja condicionada ao recorte íntimo de um criador em luto.
A pandemia real foi grave demais para que a pandemia da ficção científica ainda servisse como mote para entretenimento. Batguano Returns — Roben na Estrada nunca se assume enquanto drama autobiográfico, e tampouco funciona na vertente da comédia.
O problema se encontra na maneira como os acontecimentos trágicos dialogam com o projeto de Batguano. Apesar da coincidência improvável da trama sobre uma pandemia, a aventura original constituía uma celebração do cinema, um pastiche dos super-heróis, uma ilustração descomplexada da homossexualidade, uma abertura generosa e solar ao resto do mundo. Esta configuração resulta pouco apropriada para a sequência proposta — quase o seu avesso, na verdade. O autor, em codireção com Frederico Benevides, praticamente retira Batma de cena, tomando a jornada somente para si. Chora diversas vezes em cena, supostamente devido à ruptura com o namorado, embora esteja versando lágrimas pelos pais ausentes.
Em outra cena, Teixeira interpreta a própria mãe, deitada na cama com o pai idoso, decidindo se devem ou não assistir ao filme em que o filho pratica uma felação explícita no companheiro. Decidem que sim. A homenagem é sincera e comovente, e ninguém contestaria o direito, ou o desejo, do autor em ficcionalizar suas dores através de um projeto cinematográfico. (Aliás, pelo menos metade dos longas-metragens exibidos no evento mineiro corresponde a iniciativas terapêuticas para seus criadores, que expõem suas dores em ficções e performances experimentais).
No entanto, Batguano Returns — Roben na Estrada nunca se assume enquanto drama autobiográfico de expiação, e tampouco funciona na vertente da comédia. A longa narração inicial, criando um pretexto extenso e confuso para afastar Batma (o herói teria se vendido às Big Techs, desmaterializando o próprio corpo) praticamente retira Everaldo Pontes do roteiro, eliminando a dinâmica que constituía a marca da obra original. Os dois ainda conversam por meio de tecnologias de inteligência artificial, embora o resultado se aproxime das limitações do cinema pandêmico, limitando o número de atores e as interações, substituindo-os por conversas em off.
O mesmo vale para o único instante de erotismo da sequência: durante o flerte com um caminhoneiro, Roben sugere o sexo com o conhecido, embora desista das negociações. O interlocutor nem sequer tem um rosto. Enquanto isso, multiplicam-se as longas cenas do carro dirigindo na estrada, em silêncio, ou então do personagem borrifando água numa planta, e chorando em frente ao telefone celular. O uso do aparelho para a captação de parte considerável das imagens reforça a impressão de um filme de pandemia, apesar de ter sido realizado após o período de reclusão, quando os editais e mecanismos de fomento já tinham retornado.
Batguano Returns deixa, portanto, um gosto amargo. Investe em tiradas cômicas que nunca pretende desenvolver de fato, enquanto multiplica os acenos reais à tragédia que não ousa reconstituir enquanto tal. Não convence nem no humor, nem no drama familiar e autobiográfico. Em especial, perde a fantasia e o encanto ao se aproximar de maneira referencial de um road movie tradicional de luto e reparação. “Você sabe que somos uma invenção dos estúdios, né?”, relembra Roben ao ex-namorado. Nem mesmo as piscadelas à cultura pop surtem algum efeito.
É possível que a vivência pesarosa do diretor tenha sido forçosamente encaixada num projeto que não a comportava, partindo de um conceito incompatível com os sentimentos e emoções que pretendia veicular. A menção direta a Bolsonaro e aos acontecimentos políticos apenas comprova que Batguano, o querido e afetuoso filme de onze anos atrás, serviu de mero ponto de partida, do qual o autor se distancia assim que pode. Ao espectador, não se oferece a possibilidade de nem nos identificar plenamente com o drama protagonista (oficialmente lamentando a ruptura amorosa), nem rir com o discreto humor que jamais acredita no próprio texto.
A pandemia real foi grave demais para que a pandemia da ficção científica ainda servisse como mote para entretenimento. De certo modo, parte considerável do cinema contemporâneo pós-traumático consiste na tentativa de delimitar o quanto precisamos nos aproximar de fatos, nomes e situações verídicas para dialogar com os traumas recentes, e o quanto seria benéfico nos afastar ao máximo do real para melhor abarcar a sua importância. Nesta crise da representação, Batguano Returns — Roben na Estrada ao menos se torna um exemplo sintomática deste desconforto, e de nossa dificuldade em remediar a ferida ainda não cicatrizada.