As intenções deste projeto são bastante nobres. O cineasta Christian Frei e sua equipe buscam reconstituir historicamente a descoberta do vírus da Covid-19, desde os primeiros indícios até os registros de incontáveis mortes mundo afora, culminando na onda de desinformação promovida por líderes mundiais como Donald Trump. O filme procura denunciar a perseguição a cientistas e alertar para os riscos de novas pandemias em breve, caso não tiremos as devidas lições da tragédia recente.
Para isso, elege três protagonistas: Linfa Wang, Zhengli Shi e Peter Daszak, pesquisadores especializados em doenças carregadas por morcegos. Vinte anos antes da pandemia, eles já pesquisavam a evolução do vírus SARS-Cov e, dez anos antes do novo coronavírus, publicaram um artigo alertando a respeito da chegada iminente de uma variante mortal do vírus. Não foram escutados, é claro. Pior do que isso, foram culpados por supostamente criarem o vírus em laboratório, e por espalharem o resultado desta criação no mundo inteiro. De estudiosos visando proteger os cidadãos, tornaram-se algozes aos olhos da mídia e de parte da população.
Uma peça de propaganda tão alarmante e manipuladora quanto os veículos da imprensa e da política direitista que ele pretende enfrentar. Não se combate desinformação com desinformação.
O diretor é fascinando pela ideia que a crise sanitária mundial foi prevista. Ao invés de se focar nos médicos e cientistas que combateram a doença quando se instaurou em todos os países, ou desenvolveram vacinas posteriormente, coloca estes três indivíduos num pedestal heroico, percebendo-os como messias ou profetas do caos contemporâneo. Por isso, o longa-metragem vai muito além dos fatos. Introduz, por exemplo, um flashback da infância de cada protagonista, revelando a primeira vez que Linfa Wang andou de carro, e anunciando a paixão de Peter Daszak por zoologia desde criança. Descobrimos que Zhengli Shi é uma pessoa acolhedora, que ama cantar em karaokês. A quem interessar possa, saiba que ela precisou comer noodles industrializados durante a Covid, pois as cantinas do laboratório estavam fechadas.
Esta personalização espetacular é a primeira de uma série de escolhas profundamente questionáveis da obra suíça. Os flashbacks lacrimosos, com música triste ao piano, juntam-se aos instantes em que a música estronda a sala, em volume altíssimo, para nos alertar a respeito de coisas perigosíssimas acontecendo. O efeito da música possui o teor gravíssimo das tragédias em filmes mudos: a orquestra entra em ação para provocar o máximo efeito emocional no espectador. Frei não deseja somente informar: ele quer comover, provocar raiva, indignação, além de admiração profunda por seus heróis. Ao invés de nos convidar a pensar, afirma quem devemos amar, e quem precisamos detestar.
No final, caso a explicação pro-fun-da-men-te didática não esteja clara o bastante, ainda resume e repete as suas principais teses (temos que melhorar como sociedade, valorizar a ciência, combater fake news). O espectador é tomado por um interlocutor pouco inteligente, a quem se explica e reexplica cada ensinamento na intenção que a palestra entre na cabeça de uma vez por todas. Para tal, Culpar é acompanhado de uma narração ininterrupta do próprio diretor, elencando fatos, esclarecendo suas intenções, e preenchendo lacunas de imagens e informações que faltam ao filme. O estilo da fala e o tratamento sonoro, somados ao sotaque alemão, fazem desta narração em off praticamente uma cópia (paródica?) do estilo consagrado por Werner Herzog em seus filmes.
Ora, a ficcionalização do projeto que se pretende tão fatual contribui a aumentar a desconfiança quanto aos seus procedimentos. Vai saber por que os diretores de fotografia Peter Underhand e Filip Zumbrunn estimaram ser uma boa ideia usar um drone acelerado, passando por casas e usinas, para simular o plano subjetivo de morcegos; ou o que os motivou a encenar o trabalho de cientistas no laboratório com a menção “Filmagem Simbólica” no canto da imagem, tal qual se veria numa reportagem do Fantástico. Os e-mails de Zhengli Shi são lidos por uma atriz chinesa (supõe-se), já que o inglês da pesquisadora é bastante fraco. Conforme a trama avança, os dois cientistas asiáticos são praticamente abandonados, para se privilegiar o britânico Peter Daszak enquanto mártir-central.
Culpar ainda alega, no início, que precisou ser filmado clandestinamente “devido a sensibilidades geopolíticas”. Ora, do que se trata exatamente? Frei foi ameaçado, perseguido? Em que medida sua investigação a respeito do vírus do SARS e dos protagonistas o colocou em perigo? Não sabemos. Mas o cineasta elege a si mesmo como herói de uma causa, sacrificando-se em nome de uma informação valiosa. Ignoramos as circunstâncias da possível censura, porém sabemos exatamente em qual hotel os cientistas permaneceram, qual era a vista dos apartamentos luxuosos, e em qual quarto se encontrava o primeiro homem diagnosticado com o vírus. Prioridades.
É uma pena que um projeto movido por uma discussão tão importante se perca completamente em escolhas artísticas equivocadas. O longa-metragem se converte num desserviço à causa: uma peça de propaganda tão alarmante e manipuladora quanto os veículos da imprensa e da política direitista que ele pretende enfrentar. Não se combate desinformação com desinformação; não se pode repudiar a linguagem do sensacionalismo pela aplicação da mesma estética em sua contra-argumentação. Frei é seduzido pela comunicação gritada em tempos de redes sociais. Por isso, almeja ser pop, ágil, e provocar indignação. Ora, a reflexão passa muito longe deste panfleto maniqueísta com ares de clickbait.