Skinamarink: Canção de Ninar (2022)

Os cantos da sua casa

título original (ano)
Skinamarink (2022)
país
EUA
gênero
Terror
duração
100 minutos
direção
Kyle Edward Ball
elenco
Lucas Paul, Dali Rose Treteault, Ross Paul, Jaime Hill
visto em
Cinemas

É preciso reconhecer a confiança do diretor Kyle Edward Ball em seu longa-metragem de estreia. Partindo de um conceito extremo e limitado (no que diz respeito à possibilidade de variação e desenvolvimento), ele investe numa jornada de 100 minutos, realizada com recursos claramente esparsos. Trata-se de um cinema amador e assumido enquanto tal, tanto no sentido de “aquele que ama”, quanto de inexperiência. Mesmo assim, o cineasta apresenta uma fé profunda nestas escolhas, e evita oferecer qualquer forma de atenuante ou de concessão ao gosto médio, na intenção de atrair mais espectadores. Pelo contrário, acredita que quanto mais árida a narrativa, mais “artística” será.

Da primeira à última cena, o público encontra as mesmas vozes sussurradas, a mesma forma de iluminação em foco único, partes de corpo cortadas pelo enquadramento em scope e os filtros azul-rosa-lilás no espaço interno de uma casa. Longos instantes de silêncio se alternam com o chiado de uma televisão ligada, ou com o ruído “mágico” de uma porta e janela desaparecendo, para voltar a reaparecer em seguida. Os planos fixos se repetem duas, três, cinco, dez vezes. A mesma televisão, os mesmos brinquedos espalhados pelo chão, a mesma quina do chão com a parede, ou da parede com o teto.

Esta escolha de imagens poderia se justificar pelo protagonismo das crianças pequenas, desorientadas no interior da casa escura, quando percebem que o pai foi embora. Talvez a infinidade de planos de baixo para cima, buscando os cantos da casa, equivalessem ao olhar das crianças. Ora, a direção nunca permite compreender o pânico infantil pelo olhar dos meninos. O ponto de vista é externo, frio e mecânico. As longas sequências jamais reproduzem a perspectiva de uma criança aflita — talvez estejam mais próximas do olhar irracional de uma formiga ou outro inseto no chão.

A direção retira de cena tudo aquilo que não chame atenção a si própria. Trata-se de um exercício vaidoso, e também muito vazio, de autoria audiovisual.

Isso se explica pelo fato que Ball sustenta interesse nulo pelos personagens humanos — motivo pelo qual se torna tão difícil o envolvimento emocional com a obra. As crianças, a mãe sentada de costas numa cama escura e a voz do pai ao telefone se traduzem em ícones mínimos que o cineasta inclui para decorar a imagem, para rechear os planos. Eles serão desprovidos de personalidade, de objetivos, de sentimentos. Nem a casa, suposto protagonista da narrativa, se destaca: a câmera evita percorrer espaços longos, determinar uma geografia, investir no sentimento de solidão. Afinal, quão solitárias podem ser duas pernas em silêncio, paradas num plano fixo?

A mise en scène insiste em retirar de cena os rostos destas pessoas. Isso facilita a tarefa da minúscula produção em dirigir atores, em iluminá-los a contento, em editar os planos avessos ao movimento interno. Por isso, talvez fosse mais justo falar em modelos cenográficos do que em atores propriamente ditos: o fragmentado material humano posa para as necessidades da câmera, ao invés de o cinema se adequar à complexidade dos personagens. O menino chega perto de revelar o rosto, quando gira a cabeça de costas até um plano em três quartos. No entanto, a montagem se apressa em interrompê-lo. 

Em última instância, a direção retira de cena tudo aquilo que não chame atenção a si própria. Trata-se de um exercício vaidoso, e também muito vazio, de autoria audiovisual. O diretor organiza um tabuleiro e então joga sozinho. Ele não permite a espontaneidade, o real, o jogo cênico, a dúvida, a ambiguidade. Sua abordagem não valoriza o espaço, muito menos o tempo: a certa altura da trama, surge abruptamente o letreiro “572 dias”, embora nenhuma duração do tipo tenha sido trabalhada na vida dos meninos. O letreiro inicial, com o ano de 1995, resulta igualmente inócuo. 

Ball despreza inclusive o conflito central, no caso, o suposto sumiço do pai e o desaparecimento fantástico das portas e janelas, que piscam e voltam a aparecer. Posto que os meninos nunca olham para fora das janelas, e jamais tentam fugir da casa silenciosa, de que adianta este recurso? Que efeito desejaria produzir, para além da sensação de um sonho, misterioso e inexplicável, similar às narrativas desconexas que forjamos enquanto dormimos? Skinamarink: Canção de Ninar aposta demais nesta licença poética onde a liberdade se aproxima da aleatoriedade, do “tudo vale”. O autor se apaixona pelo próprio potencial de criação, em detrimento do resultado final. 

Em contrapartida, investe todo o seu tempo e energia numa ambientação opressora, multicolorida e lânguida. O tempo estendido dos planos, os sussurros entre as crianças, as luzes sempre apagadas fogem a qualquer cenário verossímil, no qual os meninos apenas ligariam as luzes ou chorariam, gritariam, se comunicariam. Ball prefere esta sensualidade inesperada dos pixels acentuados na tela, do ato de procurar algo estranho ou ameaçador nas centenas de quinas vazias da casa. Aos poucos, revela mais um desinteresse: o filme nunca se preocupa de fato com a tensão, com o elemento de horror, preferindo a noção de um suspense ostensivo, satisfeito em permanecer no limite da alusão.

Quando o longa-metragem enfim brinca com ferramentas do terror propriamente ditas, ele o faz de maneira simplória e sensacionalista. A montagem introduz minúsculos flashes de um sangue espirrado no corredor, de uma criança sem olhos ou bocas, e de uma ameaça (sussurrada e sem rosto, claro): “Crave a faca no olho”. Nem mesmo estes elementos motivam o diretor a aprofundar o motor da fantasia. É curioso o quanto sua iniciativa soa como uma paralisia do sono, ou um resquício de sonho, do tipo que se lembra apenas parcialmente, no dia seguinte, ao acordar. “Havia algo amedrontador ali, mas não lembro exatamente o quê”. O diretor também não sabe, ou não se dedica a criar. A sugestão se torna meio e finalidade, neste caso.

Nos dez minutos finais, Skinamarink cogita, enfim, manipular o espaço e criar o horror através das formas. Um plano se afasta da casa, o outro transforma itens domésticos numa pilha invertida, espécie de triângulo flutuante. Sensações diferentes interpelam o espectador e rompem com a monotonia profunda das quinas e pedaços de pernas infantis, sobrecarregados por uma infinidade de filtros de pós-produção. Havia uma possibilidade interessante de horror nestes fragmentos. No entanto, já é tarde: a obra se termina em seguida. Assim, face ao descaso com o desenvolvimento do próprio conceito, diante do desdém com o tempo, o espaço, os personagens, os conflitos e com a própria elaboração da imagem, muitos espectadores e fãs gritam a detecção de uma irônica genialidade às avessas.

Skinamarink: Canção de Ninar (2022)
3
Nota 3/10

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