Alegoria Urbana (2024)

Sob o concreto, a caverna

título original (ano)
Allégorie Citadine (2024)
país
França
gênero
Drama, Fantasia
duração
21 minutos
direção
Alice Rohrwacher, JR
elenco
Naïm El Kaldaoui, Lyna Khoudri, Leos Carax
visto em
Cinemas

No mito da caverna, Platão representa a sociedade como pessoas acorrentadas ao fundo de uma caverna, observando somente sombras do real. Nem sequer enxergam a si mesmas, ou umas às outras. Sem conhecerem a origem destes espectros, acreditam que se trate da realidade por completo. Mesmo que lhe revelem a ilusão por trás dos fatos, preferem se ancorar na percepção distorcida que sempre tiveram. O conhecimento, neste caso, equivaleria à libertação das correntes, num primeiro momento, e à conscientização dos demais, num segundo passo.

No curta-metragem Alegoria Urbana (Allégorie Citadine, no original), Alice Rohrwacher e JR decidem materializar este conceito de maneira lúdica. Isso significa traduzir os pressupostos da filosofia à estética cinematográfica através de uma perspectiva tão simples quanto didática, porém, sem reduzir a complexidade da reflexão. Logo, os autores nunca se dirigem a um espectador presumido ignorante e de baixa cognição. Eles tampouco escondem a premissa por trás de alguma metáfora hermética. Tudo está claro, límpido e acessível — um mérito raríssimo para um projeto do gênero.

Os autores nunca se dirigem a um espectador presumido ignorante e de baixa cognição. Eles tampouco escondem a premissa por trás de alguma metáfora hermética.

A trama gira em torno de uma jovem bailarina (Lyna Khoudri, uma das melhores atrizes do cinema francês recente). No dia do importante teste para um espetáculo, um imprevisto faz com que ela não tenha com quem deixar o filho pequeno. Portanto, decide levar o garoto consigo ao teatro. Enquanto os bailarinos efetuam suas coreografias na forma de sombras projetadas, o pequeno foge daquele espaço e perambula pelas ruas ao redor. Descobre que, por trás da pedra nas paredes, existem mundos paralelos — uma caverna, para ser exato. Basta se dispor a descascar os muros.

É preciso abrir um parêntese, neste caso: durante o maio de 1968, na França, um dos principais slogans dos protestantes era “Sob o concreto, a praia”. Conforme os estudantes arrancavam paralelepípedos para atirarem nas forças policiais, acreditavam que, nesta destruição simbólica, encontrariam algo muito melhor e mais precioso por trás — a praia, nesta alegoria. Era preciso desvestir a rua de seu concreto (atirando-o contra os opressores) para conhecer a realidade que se escondia sob seus olhos. O conceito se aproximava consideravelmente do texto publicado por Platão em A República.

Desta vez, o garotinho arranca o papel de parede que, na verdade, simulava pedras. Percebe que a caverna e os outros mundos sempre estiveram à sua disposição, cabendo saber observá-los. O pequeno, então, convida os passantes a fazerem o mesmo, descortinando Paris. Redescobrindo o cotidiano. Oferecendo aos olhos uma nova maneira de perceberem o cenário com o qual se deparavam diariamente. Leos Carax, no papel do diretor do balé, serve como faísca, incentivando o menino a se aventurar sozinho. Um diretor encorajando as novas gerações a aprimorarem o olhar e enxergarem o mundo por um viés crítico-lúdico — excelente metáfora encontrada pelos criadores.

Alegoria Urbana se reveste esteticamente de uma aparência naturalista: a transformação das paredes ocorre de modo puramente analógico, físico, em oposição a um evento mágico. Rohrwacher e JR preservam a inocência do faça-você-mesmo, uma forma singela de realismo fantástico que remete, em algumas cenas, ao Balão Vermelho de Albert Lamorisse, ou ao Balão Branco de Jafar Panahi. O balão, desta vez, sendo substituído pelo contato com a arquitetura e a concretude da cidade. Quem diria que os muros de uma geografia tão clássica quanto Paris poderia ser moldados, modificados, tal qual uma obra de arte? Um mundo criado em blocos, massinha, desenho? O próprio menino, adiante, converte-se numa colagem animada.

A sensibilidade dos dois diretores se combina de modo extraordinário neste projeto. A italiana preserva seu olhar atento à infância, junto à ideia de que o contato com a vida adulta passa por choques entre a realidade e a fantasia. Já o artista plástico encontra uma maneira de imortalizar, no cinema, suas intervenções urbanas efêmeras. Ambos acreditam que existe, sob o concreto e as paredes, muitos mundos e perspectivas para enxergar a sociedade. E talvez sejam estas dimensões a verdadeira realidade.

Alegoria Urbana (2024)
9
Nota 9/10

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