Herói de Sangue (2022)

O pai-coragem vai à guerra

título original (ano)
Tirailleurs (2022)
país
França, Senegal
gênero
Drama, Guerra, História
duração
98 minutos
direção
Mathieu Vadepied
elenco
Omar Sy, Alassane Diong, Jonas Bloquet, Bamar Kane, Alassane Sy, Aminata Wone, François Chattot, Clément Sambou, Oumar Set, Léa Carne, Indjai Caramo
visto em
Cinemas

Bakary Diallo (Omar Sy) é um sujeito fundamentalmente bom, como o cinema adoraria encontrar na realidade. Mais do que um homem possível, trata-se de um homem ideal. Marido gentil, pai atencioso, trabalhador honesto, cidadão carinhoso com os animais. Na primeira cena, ele é visto limpando carinhosamente a ferida na pata de uma vaca. Mais tarde, levado contra a sua vontade à guerra em terras francesas, libera uma raposa presa no arame farpado, enquanto os colegas não hesitam a sacrificar os bichos para saciar a fome. Os outros roubam e matam durante a crise, mas o herói, jamais.

Ele seria um parente distante do Guido (Roberto Benigni) de A Vida É Bela (1997) ou do capitão John Miller (Tom Hanks) de O Resgate do Soldado Ryan (1998): pessoas inerentemente puras, tornadas ainda mais nobres e heroicas devido às circunstâncias adversas. O diretor e roteirista Mathieu Vadepied parte do pressuposto que a guerra acentua o caráter dos indivíduos, convertendo os bons em santos, e os malvados em carrascos sanguinários. O maniqueísmo representa a consequência evidente deste ponto de vista moralizante e moralista, destinado a explicar ao espectador a conduta correta e as condutas inaceitáveis em tempos de barbárie.

Em decorrência do aspecto didático, o roteiro de Herói de Sangue tem pressa para chegar ao sofrimento. Antes de doze minutos de exibição, a Primeira Guerra Mundial explode na França; jovens senegaleses são sequestrados e levados ao combate; Bakary se vê sem o jovem filho Thierno (Alassane Diong); alista-se para ficar perto dele; chega à batalha; prepara um plano de fuga. A exemplo dos filmes citados acima, existe um prazer em retratar a guerra em sua vertente espetacular. Há bombas, pessoas correndo, desorientadas, e o pai gritando em desespero pelo nome do filho, ocultado pela nuvem de poeira decorrente de alguma explosão.

O discurso político pretensamente reparador merece questionamentos. O roteiro enxerga a matança enquanto atitude isolada de algumas “maçãs podres”, ao invés de um posicionamento de nações.

Logo, a guerra de 1914-1918 é utilizada para Bakary provar o seu valor. Enxerga-se o gigantesco embate unicamente pelo olhar do sujeito forte e valente, com interesse nulo pelas causas ou consequências do evento histórico. Posto que o senegalês não se interessa pela guerra, o filme também não o faz. O foco da direção se encontra na busca obsessiva do pai pelo garoto, e na decisão deste último em permanecer no front, por acreditar ter encontrado sua verdadeira vocação como combatente. Thierno gosta de lutar, sendo “respeitado por todos”, nas palavras de um superior, apesar de o espectador nunca testemunhar de que maneira o jovem tímido adquire tamanha notoriedade, do dia para a noite.

A luta do pai-coragem se reveste de um esforço ainda maior. Além de salvar um menino indefeso, precisa resgatar alguém que não deseja ser resgatado. Em outras palavras, precisa ensiná-lo que a guerra é ruim, os brancos não são confiáveis, e o melhor lugar para viver se encontra no seio da família, junto à mãe e aos irmãos, em sua terra natal. Num filme de evidente vocação martirizante (há inúmeros planos próximos em cadáveres e trilha sonora de pianos tristes), sabe-se de que maneira Thierno aprenderá sua dolorosa lição, e de que maneira Bakary será imortalizado pela história. O diretor promove, em sua romantização da guerra, uma canonização do protagonista.

É sintomático que Omar Sy tenha sido escolhido para o papel principal. Um dos ícones mais populares da cultura francesa, especializou-se em encarnar o “homem comum”, representante das classes populares. Malandro (em Os Intocáveis) ou ingênuo (em Chocolate); malicioso (em Lupin) ou sofrido (em Uma Família de Dois), ele encarna sobretudo os papéis de fundo generoso, motivado por sentimentos nobres, exaltando-se somente diante de alguma injustiça inaceitável. Aqui, ironicamente, o símbolo da cultura francesa é convidado a interpretar a figura de um país explorado pela França.

Num projeto que planeja honrar o Senegal e seus combatentes, teria sido minimamente coerente escolher um ator local. Apesar das origens senegalesas de Sy e do esforço visível para se comunicar em língua fula, o artista ainda representa a terra natal dos colonizadores e, por extensão, o cinema colonizador. Mas qual nome do Senegal teria apelo equivalente de bilheteria? Venceu portanto a lógica de mercado e a ideologia do blockbuster — o projeto atingiu expressivo 1,1 milhão de espectadores na França. Alassane Diong também é um jovem ator francês, ainda de origem senegalesa. Vadepied estima ser legítimo que, na hora de honrar o sofrimento deste povo africano, nenhum africano seja convocado para papéis de destaque.

Mesmo o discurso político pretensamente reparador merece questionamentos. O roteiro enxerga a matança enquanto atitude isolada de algumas “maçãs podres”, ao invés de um posicionamento de nações, movido por uma ideologia representativa da época. Por isso, não responsabiliza a França pela matança e descaso com os rapazes enviados contra a sua vontade, sem treinamento nem preparo, para morrerem na linha de frente em nome da colônia. Prefere atribuir a responsabilidade a um general sem nome nem rosto, considerado como louco pelos soldados e cabos. Chega a ser conveniente que os ícones franceses negativos sejam atenuados ao limite da invisibilidade.

A lógica individualista permite, em paralelo, que Bakary seja louvado embora se despreze o sentimento senegalês de maneira mais ampla. Conhecemos pouco sobre esta nação, o contexto social e histórico em que se encontrava no início do século XX, a luta do povo para se livrar do domínio estrangeiro. Neste contexto, o pai e o filho poderiam ser guineenses, nigerianos, malineses, sem qualquer diferença ao resultado. Para o olhar franco-francês do autor e da dupla de roteiristas (completada por Olivier Demangel), bastava que fossem negros, fortes e sofridos, para completarem a trajetória de piedade cristã pela miséria alheia.

No final, restam as tradicionais frases de efeito, chegando para ensinar aquilo que a trama já vinha martelando, com clareza infantil, a cada cinco minutos. “Quem ganhou essa guerra? Ninguém. A guerra só traz morte e desolação aos soldados. Estou no seu coração? Lembre-se de mim. Lembre-se de nós”, declama a narração em off, um recurso cada vez mais desgastado para a conclusão de dramas clássicos. Muito obrigado, filme. Eu pensava, assistindo às bombas, cadáveres e pessoas chorando, que a batalha era divertidíssima, um passeio no parque. Entretanto, agora compreendo que devo repudiá-la. Herói de Sangue trata seu espectador com condescendência, enxergando a guerra por um prisma unicamente moral, ao invés de político, histórico e social.

Herói de Sangue (2022)
4
Nota 4/10

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