Belfast (2021)

Como era gostosa a minha guerra civil

título original (ano)
Belfast (2021)
país / gênero
Reino Unido / Drama, Biografia
duração
98 minutos
direção
Kenneth Branagh
Elenco
Jude Hill, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench, Ciarán Hinds, Josie Walker, Lara McDonnell
visto em
Cinemas

Irlanda do Norte, 1969. As ruas de Belfast são tomadas por sangrentos conflitos entre grupos católicos e protestantes. Carros incendiados, casas invadidas e comércios saqueados se multiplicam pelos bairros, ao lado de barreiras e trincheiras improvisadas por milícias locais. Enquanto isso, a polícia se esforça para conter o aumento de violência. No meio do caos, o pequeno Buddy (Jude Hill) começa a descobrir a dura realidade da vida adulta. Ele se apaixona pela primeira vez, testa os limites do afeto materno e da autoridade paterna, além da lidar com a perspectiva da morte iminente dos avós.

Belfast (2021) se constrói sobre uma tentativa de equilíbrio de tons e de memórias. Por um lado, existe a história fatual e bruta. Por outro lado, a memória afetiva, repleta de cenas de carinho e humor. Para cada instante de ataques nas ruas em frente à casa do protagonista, existe outra, onde ele faz alguma piada ou se diverte com os avós queridos. A montagem encadeia estas sequências de maneira generosa, e quase automática: assim que a narrativa ameaça se tornar sombria, chegamos à divertida sequência no cinema. Quando parece se aproximar de uma coming of age story adocicada demais, chega a possibilidade de o pai se distanciar da família, mudando-se para outro país. 

O estilo agridoce constitui uma autoimposição rígida do diretor Kenneth Branagh, a partir de lembranças de sua própria infância. Na busca por uma comunicação familiar e universal, aparam-se as arestas em busca de uma obra politicamente consciente, porém inofensiva: há conflitos sem sangue nem consequências reais. Quebram-se as vidraças das casas, que se reconstroem automaticamente nas cenas seguintes. Uma loja saqueada se torna um momento divertido, e a pobreza da família numerosa e endividada não os priva de passeios, danças, espetáculos de cinema e de teatro. 

No fundo, resta a curiosa impressão de que os acontecimentos do fim dos anos 1960 não foram culpa de ninguém: eles ocorreram, simplesmente, e lamenta-se que tenham ocorrido. O roteiro jamais investiga as causas deste episódio, suas consequências na região, o papel desempenhado por lideranças locais, a reação de governantes. Que movimentações políticas os confrontos trouxeram no cenário local, nos laços com a Irlanda e com a Grã-Bretanha? Silêncio. A história política se faz a constatação de um desgaste humano, sem se interessar pelo antes ou depois deste fragmento específico.

Resta a curiosa impressão de que os acontecimentos do fim dos anos 1960 não foram culpa de ninguém: eles ocorreram, simplesmente, e lamenta-se que tenham ocorrido.

A justificativa para tal posicionamento seria clara: o filme é comandado pelo olhar do garotinho Buddy, e como este desconhece os meandros da guerra, o espectador tampouco os conhecerá. O protagonismo de uma criança angelical, inteligente e bem-humorada permite desviar o foco de meandros mais complexos. Graças ao menino de nove anos de idade, muito bem interpretado pelo novato Jude Hill, o universo adquire uma aura mágica de ingenuidade. Para ele, os fatos beiram a fantasia inacreditável, e Branagh prefere desenhá-las enquanto mero estranhamento do real. Antes da compreensão ou reflexão, encontramo-nos no terreno das sensações.

O preto e branco contribui ao distanciamento do real — afinal, não enxergamos o mundo desta maneira —, reforçado pela trilha sonora, às vezes jocosa e divertida, às vezes melancólica nas melodias de jazz. Quando frequentam o cinema, os membros da família se deparam com projeções a cores, invertendo a lógica esperada dos espectadores coloridos assistindo a filmes em preto e branco. O diretor busca outras formas de magia: a revolta nas ruas, enquanto o garotinho se situa no meio dos conflitos com um escudo na mão; a discussão sobre uma barra de chocolate ou uma marca de sabão em pó; as estratégias para driblar a professora de matemática. 

Assim, os acontecimentos macrossociais chocam-se com episódios banais da vida cotidiana: o público se reflete no privado; o universal, no pessoal; e a tragédia, na comédia. Buddy guarda semelhanças com Jojo de Jojo Rabbit (2019), e Sam de Moonrise Kingdom (2012), como protagonistas que atenuam os horrores de conflitos sociais através da ludicidade infantil. Trata-se de uma tentativa de tornar a política palatável ao público médio, acessível às famílias, e principalmente, sem apontar dedos a possíveis culpados. Deplora-se uma guerra anônima, repleta de vítimas, mas aparentemente sem algozes. Uma guerra evocada em fatos, porém desprovida de horror ou inquietação: o dilema da família central reside na dúvida entre permanecer na Irlanda do Norte ou se mudar para outro país em busca de segurança. É uma questão de escolha, ao invés de falta de escolha.

No elenco, os atores se divertem em seus papéis, especialmente os coadjuvantes: Ciarán Hinds está excelente como o avô, enquanto Lara McDonnell encarna com facilidade a lógica da rebeldia adolescente. Jamie Dornan e Caitriona Balfe estão competentes em papéis arquetípicos (o pai, a mãe), ainda que desprovidos de real desenvolvimento psicológico: eles somente reagem aos acontecimentos, mas raramente demonstram carinho um pelo outro. Na ausência de metáforas, na falta de atritos na linguagem cinematográfica polida e asséptica, resta um projeto competente, “profissional” no melhor e no pior sentidos do termo. 

Branagh oferece uma história de guerra sem fervor, uma obra de amor familiar sem paixão, ainda que repleta de meios sorrisos e pequenas tristezas. O resultado é tão coeso, em termos de ritmo narrativo, quanto morno em sua postura política, e mesmo repetitivo na dinâmica de Buddy com os acontecimentos ao redor. A dedicatória final “para os que ficaram, para os que partiram, e para todos aqueles que se perderam”, resume de maneira eficaz o ponto de vista abrangente e condescendente. Entre mortos e feridos, gostamos de todos, tememos por todos, honramos a todos. 

Belfast (2021)
6
Nota 6/10

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