Irlanda do Norte, 1969. As ruas de Belfast são tomadas por sangrentos conflitos entre grupos católicos e protestantes. Carros incendiados, casas invadidas e comércios saqueados se multiplicam pelos bairros, ao lado de barreiras e trincheiras improvisadas por milícias locais. Enquanto isso, a polícia se esforça para conter o aumento de violência. No meio do caos, o pequeno Buddy (Jude Hill) começa a descobrir a dura realidade da vida adulta. Ele se apaixona pela primeira vez, testa os limites do afeto materno e da autoridade paterna, além da lidar com a perspectiva da morte iminente dos avós.
Belfast (2021) se constrói sobre uma tentativa de equilíbrio de tons e de memórias. Por um lado, existe a história fatual e bruta. Por outro lado, a memória afetiva, repleta de cenas de carinho e humor. Para cada instante de ataques nas ruas em frente à casa do protagonista, existe outra, onde ele faz alguma piada ou se diverte com os avós queridos. A montagem encadeia estas sequências de maneira generosa, e quase automática: assim que a narrativa ameaça se tornar sombria, chegamos à divertida sequência no cinema. Quando parece se aproximar de uma coming of age story adocicada demais, chega a possibilidade de o pai se distanciar da família, mudando-se para outro país.
O estilo agridoce constitui uma autoimposição rígida do diretor Kenneth Branagh, a partir de lembranças de sua própria infância. Na busca por uma comunicação familiar e universal, aparam-se as arestas em busca de uma obra politicamente consciente, porém inofensiva: há conflitos sem sangue nem consequências reais. Quebram-se as vidraças das casas, que se reconstroem automaticamente nas cenas seguintes. Uma loja saqueada se torna um momento divertido, e a pobreza da família numerosa e endividada não os priva de passeios, danças, espetáculos de cinema e de teatro.
No fundo, resta a curiosa impressão de que os acontecimentos do fim dos anos 1960 não foram culpa de ninguém: eles ocorreram, simplesmente, e lamenta-se que tenham ocorrido. O roteiro jamais investiga as causas deste episódio, suas consequências na região, o papel desempenhado por lideranças locais, a reação de governantes. Que movimentações políticas os confrontos trouxeram no cenário local, nos laços com a Irlanda e com a Grã-Bretanha? Silêncio. A história política se faz a constatação de um desgaste humano, sem se interessar pelo antes ou depois deste fragmento específico.
Resta a curiosa impressão de que os acontecimentos do fim dos anos 1960 não foram culpa de ninguém: eles ocorreram, simplesmente, e lamenta-se que tenham ocorrido.
A justificativa para tal posicionamento seria clara: o filme é comandado pelo olhar do garotinho Buddy, e como este desconhece os meandros da guerra, o espectador tampouco os conhecerá. O protagonismo de uma criança angelical, inteligente e bem-humorada permite desviar o foco de meandros mais complexos. Graças ao menino de nove anos de idade, muito bem interpretado pelo novato Jude Hill, o universo adquire uma aura mágica de ingenuidade. Para ele, os fatos beiram a fantasia inacreditável, e Branagh prefere desenhá-las enquanto mero estranhamento do real. Antes da compreensão ou reflexão, encontramo-nos no terreno das sensações.
O preto e branco contribui ao distanciamento do real — afinal, não enxergamos o mundo desta maneira —, reforçado pela trilha sonora, às vezes jocosa e divertida, às vezes melancólica nas melodias de jazz. Quando frequentam o cinema, os membros da família se deparam com projeções a cores, invertendo a lógica esperada dos espectadores coloridos assistindo a filmes em preto e branco. O diretor busca outras formas de magia: a revolta nas ruas, enquanto o garotinho se situa no meio dos conflitos com um escudo na mão; a discussão sobre uma barra de chocolate ou uma marca de sabão em pó; as estratégias para driblar a professora de matemática.
Assim, os acontecimentos macrossociais chocam-se com episódios banais da vida cotidiana: o público se reflete no privado; o universal, no pessoal; e a tragédia, na comédia. Buddy guarda semelhanças com Jojo de Jojo Rabbit (2019), e Sam de Moonrise Kingdom (2012), como protagonistas que atenuam os horrores de conflitos sociais através da ludicidade infantil. Trata-se de uma tentativa de tornar a política palatável ao público médio, acessível às famílias, e principalmente, sem apontar dedos a possíveis culpados. Deplora-se uma guerra anônima, repleta de vítimas, mas aparentemente sem algozes. Uma guerra evocada em fatos, porém desprovida de horror ou inquietação: o dilema da família central reside na dúvida entre permanecer na Irlanda do Norte ou se mudar para outro país em busca de segurança. É uma questão de escolha, ao invés de falta de escolha.
No elenco, os atores se divertem em seus papéis, especialmente os coadjuvantes: Ciarán Hinds está excelente como o avô, enquanto Lara McDonnell encarna com facilidade a lógica da rebeldia adolescente. Jamie Dornan e Caitriona Balfe estão competentes em papéis arquetípicos (o pai, a mãe), ainda que desprovidos de real desenvolvimento psicológico: eles somente reagem aos acontecimentos, mas raramente demonstram carinho um pelo outro. Na ausência de metáforas, na falta de atritos na linguagem cinematográfica polida e asséptica, resta um projeto competente, “profissional” no melhor e no pior sentidos do termo.
Branagh oferece uma história de guerra sem fervor, uma obra de amor familiar sem paixão, ainda que repleta de meios sorrisos e pequenas tristezas. O resultado é tão coeso, em termos de ritmo narrativo, quanto morno em sua postura política, e mesmo repetitivo na dinâmica de Buddy com os acontecimentos ao redor. A dedicatória final “para os que ficaram, para os que partiram, e para todos aqueles que se perderam”, resume de maneira eficaz o ponto de vista abrangente e condescendente. Entre mortos e feridos, gostamos de todos, tememos por todos, honramos a todos.