Mergulho Noturno (2024)

O ridículo é coisa séria

título original (ano)
Night Swim (2024)
país
EUA, Reino Unido, Austrália
gênero
Terror
duração
98 minutos
direção
Bryce McGuire
elenco
Wyatt Russell, Kerry Condon, Gavin Warren, Amélie Hoeferle, Eddie Martinez, Jodi Long, Elijah J. Roberts, Rahnuma Panthaky, Ben Sinclair, Ellie Araiza
visto em
Cinemas (Cinemark Tracy – CA – EUA)

A premissa de uma piscina assassina pode soar ridícula. Como pode o objeto inanimado provocar mortes, e por que desejaria exterminar alguém? De que maneira executaria os crimes? Mergulho Noturno parte deste desafio de lógica, de roteiro e de direção. De certo modo, estes projetos impensáveis, e risíveis a priori, têm proporcionado alguns dos exercícios cinematográficos mais criativos do cinema de gênero e da indústria norte-americana. 

Trata-se de um projeto pessoal. Bryce McGuire assina a direção e o roteiro, a partir de um curta-metragem homônimo de sua autoria. Enquanto diretor, decide que o horror deriva de uma indefinição de perspectivas. Por isso, nunca sabemos ao certo de que ponto de vista estamos olhando, se estamos vendo algo que existe ou não, e oela perspectiva de quem. Não por acaso, a imagem inicial se encontra de ponta-cabeça, até a câmera efetuar um giro de 180º. Ela poderia ser considerada naturalista em ambas as posições.

A partir deste instante, o autor exibe seu arsenal de planos, enquadramentos e ângulos, junto ao diretor de fotografia Charlie Saroff — autor de outros filmes de terror bem interessantes, como Sorria (2022). A piscina, verdadeiro protagonista desta aventura, será filmada de cima, de baixo, de lado; de perto, de longe; na diagonal; em planos fixos, em movimento; sob luz da manhã, da tarde, da noite; de lâmpadas, de celular; com a nitidez do olhar humano ou a refração da água.

A ausência de desespero dos personagens se torna um dos fenômenos mais desesperadores diante da cadeira de eventos letais.

Os criadores sugerem momentos de tensão a partir das bordas, do fundo da piscina, das diferentes profundidades, da escada, da saída lateral de água, do ralo, da lâmpada. Este espaço será observado por cada um dos personagens centrais — mãe, pai, filho, filha — de dentro da piscina, de fora, da parte interna do quarto, através da janela, da cozinha, da entrada. A piscina aparenta observar os moradores por conta própria, considerando uma série de imagens em que se encontra sem uso, numa posição de câmera mirando as janelas da casa.

Em determinados instantes, as bordas somem, e as águas se convertem num oceano infinito, de onde os personagens parecem impossibilitados de sair. Este é o ponto de partida para a narrativa abraçar componentes fantásticos. Posto que a piscina jamais cria braços, voz aterrorizante, nem componentes antropomórficos capazes de matar (assim como os conhecemos), ela atrai o mal para si. Este elemento fantástico materializa os desejos das pessoas ao redor: faz aparecer um barquinho para uma criança; moedas para um garoto que se crê num jogo; e um colega para a menina flertando com o colega de escola.

A noção do medo personalizado já havia sido bem explorada em It: A Coisa (2017) e, aqui, perde um pouco de sua potência conforme monstros distintos se materializam sob as águas. O adversário não tarda a mudar de aparência: pode se caracterizar por um medo invisível (o “mal”), um monstro feminino de aspecto cadavérico, um sujeito menos humanizado, obeso e careca, ou o fantasma de uma garotinha afogada. A tensão se revela incoerente enquanto fonte, embora coesa na maneira de agir. Em outras palavras, os ataques ocorrem de maneira frequente, num modus operandi similar, apesar de, a cada vez, surgir um inimigo distinto.

Já o roteiro busca legitimar a origem sobrenatural das águas, investigar o legado dos primeiros ocupantes, expandir este poder a outras águas (banho, chuva, copo d’água). A produção se enfraquece conforme oferece uma lógica pseudocientífica a algo compreensível somente no mundo da fantasia. As melhores obras de horror recentes determinavam uma fonte de agressão, sua maneira de agir, porém, jamais inventavam razões bioquímicas para seus fenômenos (vide Corrente do Mal, Sorria e Hereditário). Aqui, a piscina funciona melhor enquanto “objeto em torno do qual coisas ruins acontecem”, tal qual uma Annabelle, do que como fonte milenar de águas malignas. 

Mesmo assim, os atores defendem seus personagens, e a estranheza da trama, com um comprometimento ímpar. É fundamental que nem o diretor, nem o elenco tratem esta galhofa enquanto galhofa: os ótimos Kerry Condon e Wyatt Russell lidam com a possível aposentadoria de um grande atleta jovem; com a subordinação feminina ao marido e ao lar; a dificuldade de construir um futuro após tantas mudanças de endereço; o receio pela sociabilidade frágil do filho mais novo. São personagens de drama, inseridos num contexto de horror.

Até por isso, diante das mutilações, perseguições e alucinações ligadas à piscina, permanecem no imóvel, e se recusam a fugir. Cobrem a piscina com uma lona, mas logo ela estará descoberta novamente. Drenam as águas, que retornam magicamente em seguida. Afinal, uma piscina qualquer não poderia constituir a fonte de tantos infortúnios, correto? Eles restam indivíduos céticos e pragmáticos, mesmo face às inúmeras provas da existência de forças do além. 

A manutenção de uma sanidade urbana e contemporânea, disposta a sacrificar a saúde mental em nome da conveniência (mas é bom ter piscina, mas a gente já se mudou tanto, mas aqui é perto da escola das crianças) faz de Mergulho Noturno uma obra contemporânea em sua compreensão da sociedade pós-moderna. De maneira análoga, Boogeyman: Seu Medo É Real enxergava uma comunidade doente, apavorada, traumatizada, porém funcional. 

O terror tem se sobressaído quando esnoba os cânones de um americanismo idealizado (a família perfeita, a líder de torcida, o garanhão da equipe esportiva) em prol de figuras medianas em poder econômico e visibilidade. Nem são populares, nem sofrem bullying; nem controlam o sistema, nem se tornam vítimas dele. A família Waller permite que a adversidade penetre sua casa porque teima em acreditar nos próprios olhos.

Chega o momento em que os quatro familiares testemunharam manifestações sobrenaturais sob as águas, porém escondem sua percepção uns dos outros, em nome da manutenção da ordem superior das coisas. Sim, existem monstruosidades e mortes acontecendo, mas paciência, amanhã tenho que acordar cedo, trabalhar, fazer prova, namorar. Não posso interromper a vida apenas porque um monstro supostamente vive no meu quintal, e algumas pessoas quase morrerem ali. Paciência. A ausência de desespero dos personagens se torna um dos fenômenos mais desesperadores diante da cadeira de eventos letais nesta história de horror.

No final, o projeto interessa pela conjunção entre um orçamento considerável e uma trama que normalmente seria executada com a estrutura de um filme B. Mergulho Noturno poderia se tornar um Terrifier (2016) ou um Ataque dos Donuts Malditos (2016). No entanto, possui uma equipe de excelentes profissionais, incluindo o diretor de fotografia, o montador, o elenco, e sobretudo os produtores Jason Blum (da Blumhouse Pictures) e James Wan (de M3gan e Maligno).

Surpreende que tal premissa seja realizada e lançada nas salas de cinema, sobretudo com tal aporte. Os estúdios Universal constituem a única major que ainda se arrisca em obras originais, às vezes ridículas, inesperadas, a exemplo de O Urso do Pó Branco, Batem à Porta, M3gan, Renfield e Ruim pra Cachorro. Boas ou ruins, constituem as experiências mais originais num circuito tomado por sequências, refilmagens e franquias derivadas de marcas conhecidas. É preciso valorizar o momento em que os grandes nomes do mercado decidem investir US$ 15 milhões, além de muito conhecimento e empenho, na trama de uma piscina assassina.

Mergulho Noturno (2024)
7
Nota 7/10

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