No Ritmo da Vida (2020)

Drag queen para toda a família

título original (ano)
Jump, Darling (2020)
país / Gênero
Canadá, Drama
duração
90 minutos
Direção
Phil Connell
elenco
Thomas Duplessie, Cloris Leachman, Linda Kash, Andrew Bushell, Sheldon McIntosh, Dylan Roberts, Kevin Allan, Katie Messina
Visto em
Cinemas

No Ritmo da Vida (2020) parte de uma estrutura clássica de união entre duas figuras fragilizadas, marginalizadas, e carentes de afeto. Por um lado, encontra-se Russell (Thomas Duplessie), ator frustrado e sem papéis, em crise com o namorado rico que rejeita sua ambição de ganhar a vida como drag queen. Por outro lado, a avó dele, Margaret (Cloris Leachman), vive sozinha numa casa distante dos filhos, sofrendo tanto com as dificuldades de se manter independente quanto com a pressão de ser internada numa casa de repouso. Ambos se sentem podados, castrados, resistindo como podem às pressões sociais para manterem sua liberdade.

A aproximação ocorre de maneira previsível e simples, conveniente ao formato do feel good movie. O jovem deseja apenas pegar o carro da avó para sua viagem rumo a um futuro melhor, mas diante da debilidade dela, acaba permanecendo na casa. O roteiro de autoria do próprio diretor, Phil Connell, passa longe das sutilezas ou das transformações progressivas. Aqui, reviravoltas são súbitas, fáceis: Russell impõe-se como drag queen de um bar local, sendo prontamente aceito, e parando de se apresentar subitamente. Adiante, intimará outro patrão de bar para acatar com sua performance, recebendo nova resposta positiva. O autor facilita bastante a tarefa para seu herói.

Embora decepcione na elaboração de um universo social (os coadjuvantes se mostram particularmente frágeis e acessórios, com destaque para o motorista-traficante), o longa-metragem se esforça em desenhar um universo psicológico plausível para os personagens principais. Nenhum deles se restringe à posição de mera vítima das circunstâncias: confrontado à opressão do namorado, o jovem resiste e parte sem voltar para trás. Confrontada à filha amorosa, porém controladora, a senhora idosa também sustenta com firmeza o desejo de continuar vivendo em casa.

Assim, o maniqueísmo desaparece de uma estrutura propensa a tais julgamentos morais: o novo hóspede da casa aproveita financeiramente da avó, embora tenha bons motivos para tal; e a anfitriã se revela carinhosa ou grosseira quando lhe convém. Os dilemas de ambos possuem caráter universal: amar ou ser amado, acreditar em sonhos profissionais e segui-los, ficar com os parentes idosos ou partir para uma vida independente. A homossexualidade do protagonista nunca se transforma em conflito: a narrativa parte do momento onde todos já aceitaram sua orientação sexual. Apenas o “coming out drag” desperta certa angústia no ator.

Os dilemas sentimentais se embalam numa estética tão acolhedora quanto impessoal. O diretor opera na chave academicista: apesar da janela em scope e da câmera na mão, permitindo agilidade nos planos e na movimentação, Connell contenta-se com os habituais close-ups durante falas, e planos de conjunto quando avó e neto se reúnem. Durante as apresentações em drag, Duplessie certamente sustenta o espetáculo, cercado por drag queens reais, embora a câmera e a montagem hesitem quanto à melhor maneira de enquadrar e de acompanhar a dança.  Os shows têm expressividade evidente, embora pudessem ter constituído ápices de expurgo emocional para o herói.

Paira um senso de imobilidade e inevitabilidade das ações […] No Ritmo da Vida ganharia em textura e profundidade caso aprofundasse as metáforas visuais.

De resto, sobram cenas beges, literalmente (a decoração na casa da avó, o sótão nunca utilizado de fato), além de indícios de relacionamentos mal desenvolvidos. Nestes últimos, cabe questionar a interação tóxica entre Russell e um garçom, em cenas excessivamente romantizadas pela direção e fotografia; e o senso de amizade abortado do protagonista com a gerente do bar. Paira um senso de imobilidade e inevitabilidade das ações: sem a existência de uma sociedade plausível ao redor, e sem objetivos delimitados (o que desejam ao certo o garoto e a mulher idosa?), resta uma sensação de inércia, com ambos descontentes e apáticos.

Talvez a melhor cena surja no instante em que o rapaz se apresenta sozinho, num bar vazio de luzes apagadas, como se dançasse para si mesmo. No Ritmo da Vida ganharia em textura e profundidade caso aprofundasse as metáforas visuais do gênero. O drama introduz tarde demais a metáfora da patinação no gelo, capaz de unir a dupla central no que diz respeito ao gosto pela performance, à apresentação, ao ato de se travestir (considerando que a maquiagem, a postura e os trejeitos de um patinador profissional também correspondam, em certo modo, ao ideal do travestimento). Mesmo assim, encontra pequenas e eficazes poesias do cotidiano, importantes neste gênero específico de drama familiar e intimista.

A conclusão busca sintetizar o espírito agridoce fundamental aos dramas independentes: enquanto um personagem obtém sucesso e o afeto desejado, o outro encontrará sua satisfação num gesto triste. Ambos tomam as rédeas de seus destinos, para o bem ou para o mal. A narrativa resume os dilemas com uma rapidez quase mágica, sem dar tempo aos acontecimentos para se desenvolverem de maneira verossímil. Ora, a crença numa revolução pessoal do dia para a noite constitui a base deste roteiro mais preocupado com os fins do que com os meios.

Resta uma constatação igualmente agridoce: o projeto competente, em sua simplicidade, foi recompensado em cerca de seis festivais de temática LGBTQIA+, e apenas nestes. No Ritmo da Vida não conseguiu furar a bolha do nicho de sexualidade e gênero, encerrando sua carreira em festivais sem nenhuma seleção em eventos generalistas de porte. Isso se mostra particularmente irônico para um filme que faz o possível para vender a ascensão da drag queen ao público médio, familiar, sem evocar disputas religiosas nem políticas. Os autores deixaram de assumir certas ousadias em nome de um teor conciliador que jamais chegou, de fato, às famílias patriarcais que pretendia atingir. 

No Ritmo da Vida (2020)
6
Nota 6/10

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