Ambulância: Um Dia de Crime (2022) possui uma maneira muito particular de antecipar as suas ações. Talvez por trabalhar com a noção de destino, ou apenas por duvidar da capacidade intelectual de seu público, o roteiro explica e avisa o que acontecerá em breve. Assim, a cena inicial mostra dois irmãos, ainda pequenos, brincando de tiro e perseguição um contra o outro. O jogo se encerra com um deles imaginando dirigir um automóvel a toda velocidade, num resumo dos próximos 130 minutos de narrativa.
Ainda na introdução, Will (Yahya Abdul-Mateen II) é descrito como aquele sem dinheiro cuja esposa tem câncer, fornecendo motivos de sobra para integrar um assalto arriscado, apesar de ser moralmente contrários aos planos. Outros podem citá-lo como alguém de excelentes qualidades ao volante, porém o público nunca verá tais capacidades em ação, como havia percebido, por exemplo com Baby (Ansel Elgort) em Em Ritmo de Fuga (2017) ou o motorista (Ryan Gosling) de Drive (2011). A construção psicológica de Will se limita aos traços mais superficiais possíveis: o pai de família que se sacrifica pela esposa fragilizada e o bebê pequeno.
Já Danny (Jake Gyllenhaal) será apresentado como o irmão sem escrúpulos, perigoso e impulsivo. A esposa alerta: “Você não está telefonando para o Danny, né?”, e trinta segundos mais tarde, Will entra em contato com o ladrão de carros. Logo, este último desempenhará o papel de líder truculento e agressivo, gritando seus diálogos e arregalando os olhos para provar sua intensidade. Ele não possui uma família a proteger, nem filhos. Além disso, demonstra prazer no gesto do roubo. Ganha um doce quem adivinhar qual dos dois será punido no final.
As mulheres desempenham um papel contraditório. Michael Bay, sujeito conservador e brutal como seus protagonistas, compreendeu após muita insistência na mídia e nas redes sociais que as personagens não podem se limitar a beldades seminuas. Por isso, ele deixa a beldade da vez (Eiza González) vestida na maior parte do tempo, e estima que respeitá-la, ou construir uma personalidade forte, equivale a torná-la agressiva, grosseira, sem sentimentos. Uma mulher forte, na cartilha simplificada do diretor, equivale a uma mulher masculinizada. Algo semelhante ocorre na construção da tenente Dzaghig (Olivia Sambouliah). Enquanto isso, o único personagem gay é visto numa sessão de terapia patética, discorrendo com escárnio sobre suas dores íntimas, até ser interrompido por uma ligação telefônica profissional.
Michael Bay respeita apenas a masculinidade e a virilidade, que ela se encontre em homens ou mulheres.
No fundo, isso apenas reforça a impressão de que o autor respeita apenas a masculinidade e a virilidade, que ela se encontre em homens ou mulheres. Personagens bons, para Bay, são aqueles que gritam, atiram, correm, dirigem — são figuras de ação e exterioridade. Já o fato de pensar sobre si mesmo, contemplar ou ter contato com sentimentos se revela uma fraqueza. O gesto se confirma na produção inteira, uma espécie de exemplo caricatural, elevado à enésima potência, do que o cinema de ação pode ser. Bay possui verdadeira fobia do silêncio e da pausa: é preciso que tudo exploda, se mova, se chacoalhe, cena após cena.
O espectador poderia se divertir ao contar o número de planos. Dificilmente uma imagem dura mais de um segundo, literalmente, antes de ser substituída pelo plano seguinte, em novo ângulo, com outra luz, outros estímulos sonoros. Os raros planos que duram três ou quatro segundos (praticamente um plano-sequência no universo do criador) possuem um trabalho de câmera tão tremido que dificulta a concentração num ponto específico, e funciona como uma espécie de decupagem interna.
De qualquer modo, é preciso que a imagem se mova o tempo inteiro, para todos os lados, numa espécie de busca utópica pelo olhar onisciente. A direção procura estar nos ares (com muitos drones), no chão, perto das armas, perto dos policiais e das vítimas, simultaneamente. Em termos de linguagem e estética, esquece-se que, quando tudo é urgência, nada o é. Em outras palavras, cenas de explosão se tornam muito mais potentes quando surgem de maneira inesperada, depois da calmaria. Mas este projeto recusa qualquer noção de ritmo, apostando na saturação insana de golpes, tiques, barulhos, guinadas, tiros, gritos, acelerações.
“Para onde estamos indo?”, questiona Will ao irmão, escurando como resposta: “Não sei! Apenas vamos!”. Adiante, a dupla se compara a uma locomotiva e a um tubarão, compreendidos como motores que jamais se interrompem, e apenas seguem adiante. O filme adota raciocínio semelhante — mais um sinal da profunda identificação do diretor com seus ladrões brutos e incapazes de qualquer forma de planejamento prévio. Will e Danny são sujeitos do tempo presente, movidos pelo imediato, pelo impulso. Bay teme o tédio como teme a câmera fixa e o plano dilatado — este é o cinema anti-intelectual por excelência.
Enquanto fórmula de ação, os planos funcionam: há agitação, sequestros, perseguições, explosões, cirurgias complexas num carro em movimento (pela segunda vez seguida, após Esquadrão 6, 2019), helicópteros, camburões, caminhões e ambulâncias para ninguém botar defeito. Cirurgias num baço explodido se resolvem com uma presilha de cabelo fechando o órgão; pessoas voam pelos ares com choques de desfibriladores, tiros certeiros revelam ter passado apenas de raspão. Desafia-se a lógica, o bom senso, a verossimilhança. Afinal, estes elementos são cobrados apenas pelos espectadores reflexivos, público que o cineasta desconsidera.
O cinema contemporâneo tem demonstrado inúmeras maneiras de viabilizar um cinema de ação que dispense a fragmentação intensa da montagem, a atenção dispersa e a imersão via desorientação. No entanto, Ambulância: Um Dia de Crime levanta a bandeira de uma estética reacionária, no sentido estrito do termo: defende-se à volta à linguagem da agitação, da perturbação dos sentidos, da grandiloquência. Will e Danny se tornam cada vez mais importantes e heróicos (ou mártires) conforme a perseguição continua e novos agentes são colocados em prática para capturá-los. É preciso fornecer sempre mais elementos, maiores e mais intenso. A estética confronta-se constantemente aos próprios limites.
No final, vencerão os machos, sejam eles homens ou mulheres. Serão recompensados os ladrões bonzinhos, as mulheres violentas movidas por um senso de retidão moral. Apesar do caos na imagem, o longa-metragem nunca perde de vista o moralismo rígido e a meritocracia — são poupados aqueles com famílias, ou propensos a construir uma (vide a visita à garotinha acidentada no final). Bay gosta de pais obstinados, porém os ladrões solteiros e debochados podem perecer. Resta essa ironia infantil e lúdica de destruir ruas, carros, edifícios em pessoas em nome da manutenção da ordem, da paz e da família patriarcal.