Faculdade de Artes 1994 (2023)

Para quê serve a arte?

título original (ano)
Art College 1994 (2023)
país
China
Linguagem
Animação
duração
118 minutos
direção
Liu Jian
elenco
Jia Zhangke, Bi Gan, Zhou Dongyu, Huang Bo, Dong Zijian, Dong Chengpeng
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Os personagens desta animação são movidos por uma contradição essencial. Eles cursam a disciplina que escolheram, e desempenham uma função que amam profundamente. No entanto, não sabem dizer ao certo para quê ela serve, ou a partir de qual momento podem se considerar artistas. Estes estudantes de artes plásticas e música de uma universidade pública chinesa tentam compreender a si mesmos enquanto criam suas artes — transmitindo, de maneira mais ou menos consciente, estes dilemas pessoais às criações.

Para efetuar um mosaico amplo do ano mencionado no título, o diretor Liu Jian compõe uma obra coral, com cinco ou seis personagens principais, além de pelo menos uma dúzia de coadjuvantes de influência notável nos rumos da trama. Há dois estudantes de pintura, aperfeiçoando seus quadros e brigando com o colega do dormitório ao lado; as duas garotas do curso de música, sonhando com seus recitais particulares e com os namorados; além do colega excêntrico que pratica artes performáticas, e de outro que se lança em obras conceituais.

O diretor observa este cenário com o bom humor de quem possui tantas críticas quanto afeto pela faculdade meio velha e suja, com quartos bagunçados e ateliês abarrotados de obras por todos os lados. Estudantes de grandes universidades públicas brasileiras poderão se identificar sem dificuldade com este cenário vibrante de barzinhos, conversas pelas quadras e corredores, debates na sala de aula e provocações no interior dos dormitórios. O cineasta fala com propriedade, transmitindo um olhar de quem conhece aquele dia a dia, expressando-o com saudável nostalgia.

A cultura ocidental permeia cada cena de Art College 1994. Os alunos têm, como referências principais, Duchamps, Picasso, Modigliani, Bach, Debussy. Na parede do quarto, colam imagens de Marilyn Monroe e pôsteres de Michael Jackson, enquanto escutam Nirvana sem parar. Estudam as regras da arte, mas acreditam que a arte não deveria ter regras. Lutam contra a falta de dinheiro, mas detestariam associar seu trabalho a um preço de mercado. Desprezam profissões de grande estabilidade financeira, mas adorariam contar com a garantia de uma renda fixa.

A narrativa navega, com ironia e senso autodepreciativo, pelos paradoxos do estudo de arte. [… Mas] é possível que a carga de diálogos incomode alguns espectadores.

A narrativa navega, com ironia e senso autodepreciativo, por estes e tantos outros paradoxos do estudo de arte. “A partir de quantos quadros alguém pode ser considerado artista?”, pergunta um aluno. O amigo responde: “Se o quadro for bom, basta um”. “Mas quem decide o que é arte? Se eu digo que é arte, então é arte”, protesta o outro. Adiante, um homem extravagante decide queimar a própria criação, num gesto de rebeldia contra as normas do sistema — até lembrar que, sem público nem fotografias para registrar o gesto, ele teria destruído o próprio trabalho em vão.

Os traços da animação favorecem o humor. Liu Jian trabalha com cenários bem detalhados e complexos, nos quais desfilam personagens de estilo muito simples. Este contraste, comum à animação tradicional, em 2D, favorece a impressão de estranhamento em relação ao real. Ao mesmo tempo, existe um cuidado notável na imagem das pinturas, de composição naturalista e detalhada. Em se tratando de uma arte sobre outra arte, o autor estabelece os domínios onde o naturalismo é necessário (a pintura, os murais), e onde a simples evocação cartunesca permite maior liberdade de expressão (o traço dos protagonistas).

É possível que a carga de diálogos incomode alguns espectadores. As duas horas de filme são ocupadas por conversas quase ininterruptas, com pouco tempo para respiro. Embora se trate de trocas divertidas, repletas de sarcasmo, elas saturam pela falta de variação. Surpreende a decisão do autor de ignorar metáforas e poesias capazes de representar o sentimento de perdição dos personagens, sem precisar referenciá-la nos diálogos entre amigos. O texto funciona como uma metralhadora de tiradas e frases de efeito, para o bem ou para o mal.

Os raros instantes de contemplação surgem de dois interstícios, espécies de clipes desconexos dentro da trama, onde se revela um sonho-pintura para ilustrar a paixão de um jovem; e uma série de fotografias desfilando em preto e branco, em funcionamento análogo a um álbum de retratos. Mesmo com a ausência temporárias de falas (cada vinheta dura poucos minutos), a trilha sonora, incluindo letras descritivas da situação dos estudantes, toma conta da cena. O longa-metragem nunca deixa de se questionar, se indagar, se explicar, numa autoconsciência vertiginosa.

Ao menos, o elenco de vozes originais sabe brincar com o estilo levemente caricatural dos jovens, que se equilibram entre a euforia e a tristeza, entre a agressividade e a timidez. A simplicidade dos traços é compensada (ou combinada) pelas vozes ricas em texturas, variações e entonações. Deste modo, garante-se a verossimilhança na elaboração de psicologias distintas. Enquanto as cores vibrantes e as cenas ágeis apontam para a leveza, as incertezas profissionais e pessoais puxam o filme ao drama intimista.

A melancolia se acentua com o passar do tempo. Apesar de não haver nenhuma indicação na montagem, os cortes simples produzem amplos saltos temporais para cada estudante. Liu Jian imagina o grupo de colegas se dispersando por motivos terrivelmente práticos: um aluno abandona a faculdade porque precisa trabalhar; outro sai do campus para economizar no alojamento, e de tão longe que vive, passa a faltar às aulas; uma garota decide se casar com um homem rico e entediante, e assim por diante. O início da faculdade corresponde ao período de sonhos e de efervescência, enquanto a conclusão, coroada pelo inverno frio e a neve, se dedica ao duro retorno à realidade. 

Por fim, Art College 1994 transmite uma visão pouco otimista a respeito da arte enquanto profissão. Trata-se de uma ironia, partindo de um cineasta veterano, e pintor de profissão. Ele nunca sugere que o público abandone o sonho em prol de uma opção mais estável, apenas evita romantizar um trabalho de reconhecimento e remuneração tão frágeis. Ao longo deste percurso intenso, suscita a impressão de que todos os artistas são meio sonhadores, e todos os sonhadores são meio patéticos — no melhor e no pior sentidos do termo.

Faculdade de Artes 1994 (2023)
6
Nota 6/10

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