Vitalina Varela (2019)

"Somos feitos de sonhos"

título original (ano)
Vitalina Varela (2019)
país
Portugal
gênero
Drama
duração
124 minutos
direção
Pedro Costa
Elenco
Vitalina Varela, Ventura, Manuel Tavares Almeida, Francisco Brito, Imídio Monteiro, Marina Alves Domingues
Visto em
Cinemas

Leva algum tempo até o espectador conhecer de fato a protagonista deste drama. O diretor Pedro Costa inicia sua jornada num passeio pelos cenários paupérrimos desta periferia portuguesa, repleta de casinhas improvisadas em vielas estreitas. Muito antes da primeira palavra, o espectador terá conhecido o universo labiríntico por onde passam raros personagens, à noite, contornando postes, escadas circulares e lajes que brotam sabe-se lá de onde. Esta geografia da pobreza beira o surrealismo, como nos quadros de Escher.

Apesar de abraçarem uma situação realista, envolvendo personagens que interpretam suas histórias verídicas, Costa e o diretor de fotografia, Leonardo Simões, aplicam o estilo particular de iluminação que o diretor vem desenvolvendo em seus trabalhos. Trata-se de cenas escuríssimas, embora bem iluminadas onde interessa ao olhar: os personagens, parte do corpo ou dos olhos se destacam ao lado de um sombrio profundo. O “efeito íris” do cinema mudo se transforma numa aplicação in loco, durante a filmagem.

Além disso, as casas contorcidas, angulares e distorcidas relembram os cenários fantásticos das obras do Expressionismo alemão. É curioso que, na intenção de obter distanciamento em relação ao real, o diretor recorra a uma forma de linguagem tão próxima da fantasia, dos cenários construídos para a ficção. Paira uma atmosfera de sonho (ou pesadelo) nesta concentração opressora de cenas noturnas e internas. Mesmo durante o dia, Vitalina e os demais homens-zumbis do vilarejo permanecem dentro de casas sem luz elétrica. Somente feixes de luz natural, que se intrometem nos cômodos empobrecidos, iluminam os rostos e corpos. A primeira cena diurna e externa acontecerá no terço final da trama.

Este longa-metragem consegue extrair do mundo aquilo que teria de absurdo, descolado da normalidade. Assim, cria estranhamento no olhar à trajetória real de Vitalina Varela, mulher cabo-verdiana que passou 25 anos esperando pela prometida passagem de avião para se juntar ao marido em Portugal. No entanto, a oportunidade nunca chegou. Ela o visita, ironicamente, depois da morte deste — a heroína é convidada a reencenar seu próprio trauma e desilusão. O gesto poderia soar perverso nas mãos de diretores vaidosos, mas aqui, recobre-se de um pudor e um respeito sepulcrais. 

Isso significa que a imagem jamais invade a privacidade de Vitalina. Quando esta se levanta para buscar algum objeto no cômodo ao lado, a câmera permanece fixa onde estava, aguardando o retorno dela. O procedimento traduz as maiores forças tanto da ficção quanto do documentário: da primeira, extrai o controle, a noção de cenários e interações que jamais fogem ao alcance dos enquadramentos. Do segundo, extrai a impressão de espontaneidade, capaz de suavizar a rigidez implacável de um drama silencioso a respeito da impossibilidade do luto.

Costuma-se dividir os diretores entre aqueles que ajustam sua câmera ao mundo e aqueles cujo mundo é obrigado a se ajustar à câmera. Ora, esta abordagem atinge um inesperado meio-termo.

Assim, o autor desenvolve uma obra profundamente estilizada, ainda que distante da vaidade tão comum aos cineastas egocêntricos. Costuma-se dividir os diretores entre aqueles que ajustam sua câmera ao mundo, com suas imperfeições e imprevistos, e aqueles cujo mundo é obrigado a se ajustar à câmera, num gesto de controle. Ora, esta abordagem atinge um inesperado meio-termo: Costa abraça a trajetória real da mulher de 55 anos, perambulando por casas reais. No entanto, por meio da linguagem, cria estranhamento, tensão, desconforto e uma profunda sensação de melancolia. 

Ele não precisa pedir à atriz que chore para demonstrar seu pesar: as luzes, cenários e a duração dos planos se encarregam de representar a mistura de tristeza, rancor e afeto carregados pela protagonista, abandonada pelo homem que ama. É impressionante o domínio de linguagem da equipe ao criar planos complexos dentro de estruturas fixas, longas e de pouca dinâmica interna (ou seja, sem atores movendo-se para todos os lados). A exemplo de Tsai Ming-Liang e Apichatpong Weerasethakul, o português domina o potencial dos enquadramentos fixos, do espaço fora de quadro e das durações dos planos.

A emoção surge por contraste: num cenário tão silencioso, as vozes de homens bêbados nas ruas provocam um ruído considerável. Nestes cômodos escuros, um pequeno feixe de luz revela objetos e partes da locação que nem sequer teríamos imaginado. Sempre existe algo novo a absorver nesta trajetória que se produz aos poucos, sem uma explicação inicial, nem um senso de inevitabilidade. As cenas são apartadas de uma dinâmica de causa e consequência: elas poderiam se montar em outra ordem, mas preservam, em ritmo e tom, um aspecto etéreo, lânguido.

Os personagens falam raramente, e na maioria dos casos, para si mesmos. Some a função do diálogo enquanto motor de conflito, ou de explicação ao espectador: cabe ao público juntar os pontos necessários e compreender os objetivos desta triste personagem ao visitar Portugal. Vitalina tece ruminações para si mesma, em voz baixa, numa forma de meditação ou pensamento interno. Até o padre, importante figura masculina de manutenção da ordem, discursa a si próprio, de olhos baixos. Os personagens confessam seus sentimentos, suas dores, ao vazio dos cômodos e das casas. Já o espectador presencia estes momentos numa mistura de cúmplice silencioso e intruso de um espaço ao qual não pertence. 

Embora a viagem constitua um acerto de contas simbólico, propenso às lágrimas e ao expurgo emocional (“Bem aventurados os que choram”, afirma o padre), Vitalina praticamente não chora, e o espectador tampouco será convidado a se identificar com a viajante pelo prisma dos sentimentos. A trama ocorre num momento posterior aos choques: o corpo já foi sepultado, e a esposa teve muitos anos para chorar o abandono em sua terra natal. Resta a impressão de cansaço e torpor, diante da evidência da morte. O que fazer, agora? A quem reclamar? 

Costa filma o não-movimento por excelência, ou seja, a incapacidade de mudar, de se mover. Em se tratando de um filme a respeito de uma viagem entre continentes, com direito a visitas por casas e igrejas, atinge-se um curioso road movie da imobilidade, onde o marido amado e odiado será representado pela ausência. Fotos, símbolos e aspectos documentais deste importante personagem são retirados de foco: o espectador imaginará a aparência, as motivações e a índole do pedreiro que vivia em condições de miséria na terra distante, acumulando as sinas de estrangeiro e de trabalhador explorado.

“Aqui não há nada para ti”, repetem os diálogos, inúmeras vezes. Triste constatação para a mulher que sonhava com um Portugal de conciliações. “É saborosa, aos olhos do Senhor, a morte de seus servos”, comenta o padre, numa mistura de afirmação e enigma. Vitalina Varela sustenta, do início ao fim, a aparência de mistério, afinal, acumulamos tantos esclarecimentos quanto dúvidas ao longo do percurso. O diretor jamais explica sua heroína, deixando que o rosto expressivo da protagonista transmita todos os questionamentos e emoções necessários. Nunca enxergamos a narrativa pelos olhos dela: Vitalina será vista de fora, de longe, com uma porção de respeito, e outra de temor.

Este cinema magistral, que privilegia perguntas ao invés de respostas, representa um gesto político e humano fundamental. A forte intervenção de luz e a aproximação do pesadelo não serve a atenuar as dificuldades, nem a reforçá-las no sentido de denunciar a miséria e a injustiça contra esta mulher. Costa interfere ao máximo no espaço e no tempo (matérias-primas absolutas da mise en scène) enquanto intervém o mínimo no trabalho emocional de sua atriz, e nos rumos narrativos. O roteiro de poucas ações e reviravoltas se choca com a estética repleta de significados profundos e ostensivos. Aqui, quem chora são as luzes e as casas vazias, em oposição aos pobres personagens, e aos personagens pobres.

Vitalina Varela (2019)
10
10/10

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