Almamula (2023)

O monstro dos devassos

título original (ano)
Almamula (2023)
país
França, Argentina, Itália
gênero
Drama, Suspense, Fantasia, Terror
duração
95 minutos
direção
Juan Sebastian Torales
elenco
Nicolás Díaz, María Soldi, Cali Coronel, Martina Grimaldi, Luisa Lucía Paz, Beto Frágola, Tania Darchuk
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Segundo uma lenda local, Almamula seria uma jovem promíscua, que teria dormido com o próprio pai e irmão, além dos homens e mulheres de seu vilarejo. Expulsa da família e enviada à floresta, teria se transformado num monstro que ataca especialmente os promíscuos, “desviantes”, perversos. Quando duas garotas se beijam, ou quando meninos exploram o prazer entre si, correm o risco de receber a visita desta figura antropomórfica. Eles serão levados às entranhas da mata, de onde nunca mais sairão.

Existem contradições evidentes na figura tão improvável quanto fascinante desta criatura. Por que a vilã, amante da fornicação, perseguiria os praticantes das atitudes defendidas por ela? Este fantasma do moralismo guarda mais semelhanças com uma freira, ou uma liderança evangélica, do que um demônio da libertinagem. Como a entidade estaria ciente dos desvios de norma de todas as pessoas, incluindo aqueles cometidos em segredo? Ela se assemelha, até demais, a uma figura divina por seu caráter onipresente e onipotente. Almamula possui muitas características em comum com o próprio Deus todo-benevolente-porém-punidor-quanto-necessário.

Almamula subverte os coming of age stories de adolescentes gays, tanto pela intrusão de um monstro desejável (ao invés de amedrontador) quanto pela associação direta entre burguesia e ignorância.

As incoerências se justificam pelo fato que a criatura constitui uma criação das lideranças cristãs, nesta região campestre do interior da Argentina. Assim como as demais fábulas infantis, serve a disciplinar através do medo: se você beijar alguém do mesmo sexo, se masturbar demais, e ceder a práticas não-tradicionais de prazer carnal, será sacrificado. Até por isso, permite-se que a homossexualidade seja equiparada ao incesto e à pedofilia (vide a menção ao sexo com pai e irmão), assim como fazem os religiosos mais severos, na tentativa de transformar o afeto LGBTQIA+ numa perversão ou doença abominável.

Neste drama, Nino (Nicolás Diaz) é um pré-adolescente gay. Ele não está descobrindo a sua orientação: o garoto possui plena consciência de seu desejo por homens, igualmente visível aos familiares e os demais meninos do bairro, que o espancam brutalmente. A família conservadora culpa a vítima pelo ocorrido (“Ele é uma má influência sobre nossos filhos”, reclamam as outras mães do bairro, temendo uma homossexualidade contagiosa), levando-o à casa de campo deste núcleo burguês, onde poderá receber o aconselhamento próximo de um padre.

Ao descobrir tal lenda, o estudante acredita em sua existência porque precisa acreditar. Um dos elementos mais interessantes no drama de Juan Sebastian Torales reside na fascinação do protagonista pela criatura invisível. Embora tema ser levado para a floresta e aniquilado, ele logo compreende que a Almamula poderia acolhê-lo. A mulher devassa seria como ele, e o entenderia. Se há algum local de pertencimento social ao jovem gay, ele se encontraria nos braços do monstro. 

Então suplica, dia e noite, para ser levado. Passa a “pecar mais”, no intuito de chamar a atenção de seu ídolo feroz. Os amigos de Crisma podem rezer a Deus, porém Nino reza à Almamula. O roteiro possui uma consciência aguda da figura da monstruosidade enquanto representação das sexualidades “desviantes”. O cinema de fantasia sempre ofereceu ferramentas excelentes para ilustrar as condutas fora da norma, indesejadas pela maioria, e percebidas enquanto ameaça. Por isso, a Almamula se converte, neste contexto, em bênção e uma maldição. Ela ainda proporciona um senso de comunidade semelhante àquele do gueto — algo fundamental aos meninos gays em meio a culturas repressivas.

O projeto argentino vai além, ao desenhar a sexualidade da mãe, da irmã, da vizinha, do pai. As mulheres adultas desejam o caseiro, um sujeito musculoso que desfila sem camisa pelo terreno, prestando serviços braçais. A irmã mais velha beija o namorado, a quem deixa tocar os seios, algo que jamais desperta a ira dos pais (afinal, em sociedades desiguais, a heterossexualidade constitui um privilégio). O pai considera que, trazendo dinheiro ao lar, terá feito a sua parte na criação do menino. 

Ninguém compreende de fato Nino, porque não deseja fazê-lo. É mais fácil dizer que ele está errado, precisa mudar, que pare de ser assim. O roteiro possui o mérito de inserir a homofobia num sistema político-social amplo, enxergando os pontos de vista dos sofredores e dos castradores, em igual proporção. Ainda reserva, na figura do caseiro, uma espécie de compreensão fraterna-paterna que Nino jamais havia recebido dos familiares. Onde sugeria, ao princípio, uma mera figura de apelo erótico ao garoto, chega uma inesperada proposta de afeto.

Esteticamente, o cineasta trabalha com a descrição clássica dos “dramas de personagens”: segue Nino por onde for, cola-se ao rosto e nuca do menino quando possível, desfoca o fundo do enquadramento para sugerir a visão limitada da mãe e demais adultos. Abre os enquadramentos somente quando deseja tornar o herói pequeno face à natureza (que simboliza seus próprios desejos), caso em que a floresta o engole e esconde, para o bem ou para o mal. 

O jovem ator é pouco solicitado em termos de evolução dramática ou alterações emocionais. Aqui, os estímulos provêm do mundo externo (o padre, o caseiro, a mãe, o quadro da Almamula, a irmã), cabendo ao menino reagir, de maneira cabisbaixa e com poucas palavras, aos desmandos de terceiros. O restante do elenco evita a caricatura (exceção feita à vizinha enxerida), comprovando o desejo de traçar uma crítica social distanciada, ao invés de uma vingança maniqueísta contra a direita cristã. O cineasta discorda destas pessoas, porém não as desrespeita.

Ao final, Almamula subverte os coming of age stories de adolescentes gays, tanto pela intrusão de um monstro desejável (ao invés de amedrontador) quanto pela associação direta entre burguesia e ignorância, deixando aos habitantes mais pobres, e segregados socialmente, a capacidade de empatia. Há um posicionamento político claro nesta trama que alterna cenas de aparência fantástica ou real (o pai com os colegas mascarados na floresta) com outras, crepusculares ou delirantes (o sonho erótico com o namorado da irmã). O diretor sabe manipular percepções e desejos, saltando de maneira orgânica entre a psicologia e a sociologia, entre o indivíduo e a comunidade.

Almamula (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.