À primeira vista, A Médium (2021) não se parece com uma ficção, muito menos com um filme de terror. Em entrevistas convencionais, diretamente às câmeras, a xamã Nim (Sawanee Utoomma) explica sua tarefa de cuidados espirituais no vilarejo onde vive, na Tailândia. Caso a linguagem documental ainda não seja percebida pelos espectadores, os letreiros avisam que dois documentaristas foram convidados ao país para investigar a religiosidade pagã dos tailandeses.
Sublinham-se aos olhos do espectador os aspectos de mínima intervenção, e de aparência de realidade — particularmente interessantes no horror. Utiliza-se a luz natural, o som direto das falas e dos ruídos ao redor dos personagens, enquanto a câmera treme livremente, em excesso, remetendo ao estilo realista associado ao cinema independente, ou às vídeo-reportagens de urgência. O longa-metragem se esforça para ser considerado, em sua fase inicial de imersão na história, enquanto um documentário em que as ações ocorrem ao vivo, capturadas por acaso pela dupla de diretores presentes.
O elo permitindo unir este registro à ficção se encontra no found footage. O subgênero trabalha com imagens de aparência amadora, supostamente encontradas após seus autores serem mortos por algum psicopata e/ou força sobrenatural. Trata-se de uma ficção, é claro, porém obras como A Bruxa de Blair (1999), REC (2007), A Forca (2015) e A Visita (2015) testam os limites da adesão do espectador ao sugerirem, ainda que temporariamente, a possibilidade de as ações terem ocorrido de verdade.
O cineasta Banjong Pisanthanakun efetua uma bela passagem da linguagem pseudo-real à ficção cada vez mais assumida e espetacular. Gradativamente, com precisão cirúrgica, as cenas incorporam elementos que provocam estranheza na impressão do real. No início, os personagens presenciam um grande animal sacrificado no meio da avenida. Depois, o estado psíquico da jovem Mink (Narilya Gulmongkolpech, foto acima) se agrava com rapidez. Os documentaristas a perseguem no trabalho, algo comum nos documentários, antes de segui-la no banheiro e na cama.
Assim, o dispositivo cinematográfico se converte em elemento de intrusão e motor de suspense. Conforme a garota manifesta um comportamento estranho, por estar supostamente possuída por um espírito, o olhar externo se faz mais presente, multiplicando os pontos de vista. As pequenas escapadas íntimas de um e outro personagem serão captadas pela câmera-voyeur, onipresente. Rumo ao final, os cinegrafistas segurarão o braço de uma mãe desesperada, à força, e um deles filmará o grave acidente envolvendo um bebê, ao invés de ajudar os pais da criança.
O desconforto surge da própria existência da imagem: ao contrário de cenas concebidas para nós, temos a impressão de assistir a cenas filmadas apesar de nós, em instantes que exigiriam privacidade.
O desconforto surge da própria existência da imagem: ao contrário de cenas concebidas para nós, temos a impressão de assistir a cenas filmadas apesar de nós, em instantes que exigiriam privacidade. O found footage sempre teve dificuldade em justificar a presença da câmera ligada o tempo inteiro, mesmo quando os protagonistas se tornam alvo de ataques mortais. Aqui, os personagens-diretores estão perto demais das ações, mas não são visados por elas. A família afetada pelo espírito obsessor acolhe estes documentaristas que jamais querem participar, apenas observar. Os sujeitos mal-educados e abusivos correspondem, em certa medida, ao olhar do público.
Diferentemente do found footage, no entanto, desconhecemos o final reservado aos cinegrafistas. Este subgênero costuma pressupor a morte dos criadores da imagem, sacrificados pela ousadia de se aproximar de uma entidade transcendental. Aqui, a estrutura do flashback é substituída pela atenção cúmplice do espectador, que acompanha a trama com a mesma surpresa dos cineastas fictícios. Não há preparação para os fatos que estão por vir, algo raro e bem-vindo num gênero cujos exemplares da indústria se tornaram bastante previsíveis.
A Médium consegue driblar os principais clichês desta linguagem ao abraçar de maneira generosa, e nada fetichista, a cultura tailandesa. Ao invés de um demônio maligno, típico dos filmes cristãos de exorcismo, tem-se uma pluralidade de seres que podem ser bondosos ou nocivos. O xamã, em oposição ao padre, organiza rituais muito diferentes do exorcismo tradicional, enquanto Mink se transforma progressivamente em criatura perigosa. Uma morte importante será introduzida sem alarde, e esclarecida apenas via letreiros.
A preocupação em romper com os códigos norte-americanos chega ao uso dos espaços, a importância da língua, da natureza local. As sequências de natureza contempladora captam longos rituais, sem o habitual estilo fragmentado do horror industrial, nem uma construção artificial da tensão via luz ou trilha sonora. Os supostos heróis possuem moral ambígua (algo sustentado até a cena final), enquanto a garota possuída oscila entre a menina infantil e birrenta, e a adolescente hiper sexualizada, capaz de fazer sexo com todos os homens do escritório.
A feminilidade é colocada em questão de maneira perturbadora: o sangue jorrando das pernas de Mink soa como uma menstruação a princípio, até o fluxo aumentar em níveis preocupantes. Em seus delírios demoníacos, a jovem abusa sexualmente do tio mais velho, e ataca passantes na rua durante uma procissão. O roteiro brinca constantemente entre o aspecto de pureza e retidão da moral religiosa, e as derivas monstruosas desta forma de prisão.
Afinal, as mulheres são obrigadas pela entidade a serem xamãs, e a recusa em participar desta função social faz com que os espíritos as persigam e punam, até aceitarem, por força da tortura sucessiva, cumprir com sua tarefa feminina. Não é difícil enxergar nesta parábola uma investigação da pressão imposta às mulheres, obrigadas a seguir princípios determinados pelos homens. Em busca de autonomia, a tia Noi (Sirani Yankittikan) será severamente punida.
Devido à atenção profunda aos códigos sociais e políticos da Tailândia, incomoda que o filme tão interessante chegue ao Brasil em cópias apenas dubladas. Com 130 minutos de duração, planos contemplativos e estilo muito diferente do horror hollywoodiano, o filme dificilmente pode se passar por um filme de possessão comum, de amplo alcance popular, que teria algo a ganhar com a cópia dublada. Escutar estas pessoas falando em português, ao invés de sua língua local, retira do espectador a percepção das ótimas atuações, além da imersão cultural na trama.
Além disso, o título brasileiro mereceria ponderações. É visível que os distribuidores brasileiros se ativeram ao título internacional em língua inglesa, The Medium, optando pelo equivalente imediato. Ora, a mediunidade, no Brasil pelo menos, está bastante associada ao espiritismo, e por extensão, ao cristianismo. Quem esperar uma pessoa capaz de se comunicar com espíritos ficará muito surpresa com esta representação radicalmente diferente do xamanismo tailandês. Além disso, “the medium”, em inglês, também possui o sentido de “meio” (no sentido de meio de comunicação, ou modo de procedimento), que se perde na tradução “médium”. Uma vez mais, a cultura do filme original se perde em nome de um tratamento de fácil exportação, e menos fiel à obra.
De qualquer modo, o resultado é um excelente exemplar do gênero, cuja violência corporal e de gênero cresce em proporções assustadoras no terço final. As sequências do matagal, do ritual para Mink e do cativeiro demonstram um controle da imagem, do ritmo e do tom invejáveis por parte do cineasta e da equipe. Mesmo trabalhando dentro de um registro fantástico, Banjong Pisanthanakun sempre mantém um laço com a aparência de realidade. Ele nunca subestima o espectador, nem recorre a truques fáceis para aterrorizá-lo. A possibilidade de deixar a ficção impregnar a trama aos poucos, passo a passo, se traduz numa experiência fascinante para o espectador.