Não é fácil adentrar o universo de Crimes do Futuro (2022). O diretor David Cronenberg revela o funcionamento desta estrutura social particular sem explicá-la, nem conduzir o espectador por uma descoberta gradual. Percebemos, aos poucos, que os indivíduos superaram a dor, agora inexistente. Em compensação, passaram a desenvolver novos órgãos, que brotam de maneira aleatória e abrupta pelo organismo, como tumores.
Este movimento resulta na impressão contraditória de evolução e involução. Camas complexas, na forma de uma casca de noz, mapeiam o corpo adormecido, ajudando na circulação e no repouso. Cadeiras movem-se enquanto comemos, para facilitar a digestão. Em contrapartida, vive-se em pequenos guetos escuros, sujos, de paredes descascadas e repletas de manchas. Ninguém aparenta estar feliz. As gargantas têm se fechado à comida tradicional. Tem algo errado acontecendo com nossa espécie.
Caso desejasse, o projeto poderia mergulhar a fundo nos preceitos da ficção científica, explicando como cada traquitana funciona. Ora, o autor despreza esta possibilidade. Enxergamos apenas a cama oscilando de um lado para o outro, mapeando sabe-se lá como as funções orgânicas de seu ocupante. Uma pequena gosma é acariciada, na função de joystick ou controle remoto, podendo efetuar cirurgias complexas à distância. Para que servem os braços pegajosos da cadeira de alimentação?
A aparência de mistério se sustenta ao longo de toda a projeção. Diversos elementos jamais serão contextualizados, apontando apenas a uma comunidade deslocada de seu propósito. O retrofuturismo corrobora esta indefinição: num momento posterior, voltaremos a utilizar telefones gigantescos, pranchetas com papel e grandes arquivos de metal, ao invés dos hologramas e carros voadores esperados do imaginário high-tech. O ambiente virtual será esquecido em prol de algo muito concreto: o corpo.
“Corpo é realidade”. A frase-mantra da narrativa aponta à transformação da automutilação enquanto ferramenta de prazer, resultando na cirurgia como “novo sexo”. “Desculpe, sou ruim em sexo antigo”, lamenta Saul Tenser (Viggo Mortensen) a uma admiradora excitada. A exploração sensorial via bisturis, cicatrizes e próteses aproxima-se da masturbação, visto que pode ser realizada em solitário. Quando um casal de amantes se reúne na cama, ambos são cortados por uma lâmina afiada enquanto se observam. Eles mal se tocam. A sexualidade se descolou dos genitais para enxergar no corpo inteiro um território de exploração e de prazer.
Cronenberg desenvolve um universo sedutor e chocante, apenas para retirar o choque e se voltar aos bastidores.
Por este aspecto, uma das leituras mais interessantes deste suspense consiste na perspectiva queer. Vale lembrar que o termo não consiste num sinônimo de identidades LGBTQIA+, e sim num enfrentamento das normas patriarcais, masculinas e conservadoras. A fuga à moralidade religiosa na descoberta do próprio prazer consiste numa aventura queer de ruptura e ousadia. Aqui, pouco importa se as pessoas são homens ou mulheres, hétero ou homossexuais, cisgênero ou trans. Elas representam cidadãos dotados de desejo, podendo se relacionar com quem desejam.
Por isso, os protagonistas representam deslocamentos dos arquétipos de homem e mulher. Caprice (Léa Seydoux), inventora sensual e erotizada, especializa-se na parte mecânica de procedimentos cirúrgicos, e mantém um corte de cabelo próximo da androginia. Timlin (Kristin Stewart), garota recatada e introvertida, revela-se um caldeirão de libido; e Saul, o homem-fetiche do submundo pornográfico, cobre o corpo o máximo possível, tendo vergonha das excrescências que crescem entre suas vísceras.
Em consequência, todos os relacionamentos são sexualizados e assépticos, simultaneamente. Duas mulheres compartilham uma cama nuas, mas não sabemos se extraem qualquer forma de capital erótico deste ato. Talvez o corpo do herói esteja produzindo vários órgãos novos, mas talvez não esteja desenvolvendo tumor nenhum. O cadáver de uma criança especial pode representar uma revolução da espécie, ou talvez decepcione os espectadores dos shows mórbidos de Caprice e Saul. Crimes of the Future apresenta um contexto onde podem estar acontecendo ações em excesso, ou talvez seja marcado pela inatividade.
Esta curiosa indefinição se torna um dos motores centrais para a recepção mista, e confusa, dos espectadores ao projeto. As cenas mais explosivas são ocultadas dos olhos do espectador (a primeira autópsia, a descoberta de uma nova habilidade do sistema digestivo), enquanto outras, aparentemente banais, dominam a trama (visitas ao setor de catalogação de órgãos, discussões a respeito de um concurso de beleza). Cronenberg desenvolve um universo sedutor e chocante, apenas para desviar o olhar e se concentrar nos bastidores.
Por isso, a obra de sensações retira da experiência o sensacionalismo; e o filme sobre cirurgias, ameaças e medo da morte prova-se frio. Nenhum personagem se transforma moralmente neste percurso, tampouco atravessa fronteiras morais ambíguas. Não enxergamos a aventura pela perspectiva de ninguém em particular — pelo contrário, observamos este grupo exótico de figuras mutiladas à distância, sem convite à emoção ou identificação. Caso alguém sobreviva ou morra, talvez fiquemos indiferentes. A conclusão será, por sua vez, uma espécie de anticlímax, uma suspensão repentina dos acontecimentos.
O projeto carece, em particular, de um senso de estrutura social. Distopias apenas se definem enquanto tais a partir do momento em que rompem com o domínio de poder e instauram uma nova ordem: o mundo distópico, no cinema e na literatura, sempre funcionou como excelente comentário da nossa sociedade contemporânea desequilibrada. Este roteiro, em contrapartida, filma a margem sem imaginar o centro. Contra quê estes indivíduos se opõem? Quem governa este mundo, através de qual força? Há dinheiro, ou outros instrumentos de troca? Existe alguma forma de governo, de polícia, de juízes, de escolas? Que instituições restaram, e quais nasceram em seu lugar, para além do domínio cirúrgico?
As famílias e as empresas são meramente citadas neste universo em que a arte performática, vejam só, se tornou a profissão da moda. É impossível compreender as condições de exclusão social sem saber quem está segregando, com qual objetivo, através de quais maneiras. Situado em pequenos guetos sombrios, o filme jamais explora o que existiria ali fora, nas ruas, durante o dia. A metáfora de que este mundo desprovido de dor estaria, ironicamente, repleto de sofrimento, se perde pela ausência de abertura à diferença. Por isso, a interpretação queer é sabotada: não há ruptura de normas sem a construção prévia das mesmas.
Crimes of the Future interessa mais enquanto elaboração de uma atmosfera, uma estética única e enigmática, do que pelos acontecimentos no interior destes espaços. Cronenberg e sua equipe concebem um mundo escuro, mesmo de dia, ainda que repleto de pequenos feixes de luz cuidadosamente posicionados, graças ao trabalho atento da direção de fotografia. O horizonte é tingido de tons ocres, marrons e pretos, desprezando cores fortes. As cirurgias avançadas são feitas com garras mecânicas em forma de osso, e os melhores casulos de autópsia se assemelham a caixotes de resina — e talvez o sejam, de fato.
O espectador é constantemente levado a questionar aquilo que está vendo: isso é real? É isso mesmo que entendi? Para que serve tal instrumento? Para onde vão estes personagens andarilhos, que caminham de um cômodo ao outro sem saírem do lugar? A narrativa ameaça enveredar pela fábula ecológica, pela noção apocalíptica de fim da humanidade, pela busca filosófica do mínimo denominador comum da humanidade. Sem comer como antes, nem fazer sexo como antes, ainda somos humanos? A partir de qual momento nos transformamos em máquinas, em monstros?
Para o bem ou para o mal, nosso futuro se encontra na imagem de um garotinho especial, porque capaz de digerir plástico, e dotado de um apetite voraz. Através de sua rebuscada jornada underground, Cronenberg nos aproxima daquele mundo melancólico de Wall-E, o robozinho sensível que passava os dias recolhendo sucatas deixadas pelos humanos num planeta escuro e abandonado. O robô, pelo menos, era dotado de amor e de sonhos, algo que Caprice, Saul, Timlin e seus colegas parecem ignorar.
Ao menos, o longa-metragem porta essa compreensão fundamental de que a política, na pós-modernidade, passa de maneira obrigatória pelo corpo. É no corpo que se elabora o direito, a identidade, a ideologia. No Brasil de 2022, temos corpos executados, esfaqueados, estuprados na mesa de parto. As reivindicações parte daqueles que lutam pelo direito de ocupar locais públicos, sem o risco de represália, ou de preservar a vida de uma garota grávida em decorrência de um estupro. O terreno de batalha do século XXI se encontra no corpo, que será, neste caso, devidamente violentado, recortado, invadido — sem dor, porém com grande tristeza.