Maior que o Mundo (2021)

O marginal é pop?

título original (ano)
Maior que o Mundo (2021)
país
Brasil
gênero
Comédia
duração
100 minutos
direção
Roberto Marquez
elenco
Eriberto Leão, Luana Piovani, Gabi Lopes, Giovanni Venturini, Lucas Miagusuku, Carolina Miranda, Eduardo Parisi, Fernanda Young, Gabriel Godoy, Otto
visto em
Cinemas

O intuito deste longa-metragem é claro: o diretor Roberto Marquez pretende homenagear o Cinema Marginal, especialmente aquele praticado na Boca do Lixo. Na década de 1970, estas produções paulistanas de baixo orçamento se dedicavam à vida de anti-heróis, explorando o cinema de gênero e o apelo erótico das histórias. David Cardoso, Juan Bajon, Cláudio Cunha e outros produtores se especializaram neste tipo de obras libertárias e libertinas.

Além do referencial tipicamente brasileiro, o filme se inspira nas obras literárias de Charles Bukowski, conhecido pelo estilo oral e pelo vocabulário assumidamente chulo e provocador, reproduzindo uma linguagem do povo. O autor é inclusive citado pelo roteiro. Em outras palavras, Maior do que o Mundo surge da proposta de se afastar de uma confecção burguesa e polida do audiovisual para abraçar os exageros, as “sujeiras”, os ruídos, o politicamente incorreto. 

Por isso, sua chegada ao circuito comercial, com atores e atrizes famosos, constitui tanto uma conquista do cinema de pretensões subversivas quanto uma traição de seu propósito — afinal, as obras de Carlos Reichenbach e José Mojica Marins eram populares em sua época, mas jamais visariam as salas de shopping centers. Ora, os tempos são outros, tanto para a produção quanto para o consumo de cinema. Talvez esta distância seja o elemento mais flagrante do filme lançado em 2022.

O projeto se aproxima de seus referenciais através da temática e da construção dos personagens. Kbeto (Eriberto Leão) é um escritor conhecido por uma obra só, mas não consegue escrever novos livros tão radicais quanto o precedente. Ele vive cercado pelos amigos em botecos de São Paulo, procurando pequenos bicos enquanto buscar extrair algum dinheiro da filha Maria João (Maria Flor). Enquanto isso, multiplica os encontros fracassados com mulheres (Luana Piovani, Gabi Lopes) que representam suas amigas de festas e inferninhos. Vive-se na noite e nas ruas, bebendo, fumando e cheirando.

O olhar à rotina do grupo é carregado de humor autodepreciativo, trapalhão, permitindo certo distanciamento. Desta maneira, torna-se evidente que os autores não defendem este modo de vida como um exemplo a ser seguido, porém, tampouco o condenam moralmente. Pela perspectiva do filme, Kbeto, Mina, Audra, Kim e outros seriam aqueles amigos que encontramos de vez em quando, com muito carinho, com quem damos risadas mesmo sabendo que estão cheios de falhas e cometem erros com frequência. Existe uma assumida condescendência em relação a estas figuras.

Maior que o Mundo carece de algo essencial às obras que homenageia: uma estética marginal. Ele adota uma linguagem acadêmica, limpa e quadrada demais para sujeitos tão extremos.

Os atores se entregam com gosto à tarefa, sobretudo Eriberto Leão. Nota-se o prazer do intérprete em encarnar o sujeito meio grosseiro, fracassado, sempre bêbado, broxando com as meninas, irritando os colegas e demonstrando uma covardia hilária diante dos adversários. O ator constrói um corpo flexível, as expressões exageradas, oscilando em tons de voz e intenções. Pelo jogo cênico, ele transparece o afeto e a diversão de ser Kbeto, apesar do fracasso pessoal e profissional do protagonista. O principal mérito de Leão se encontra no entendimento íntimo deste personagem.

Luana Piovani também oferece o corpo e a voz despudorados, sem vaidades, e mesmo, pelo contrário, com certa vontade de chocar pela brutalidade. Eles se encontram a certa distância da esforçada Gabi Lopes, que transparece a inexperiência para um papel tão exigente, e mesmo de coadjuvantes de potencial, como Lucas Miagusuku e Giovanni Venturini. Talvez se defenda que o desnível entre profissionais e novatos decorra de um gesto voluntário da direção. O teor caseiro e amador do cinema marginal tende a desculpar muitos desníveis, abraçados como escolhas possivelmente propositais.

No entanto, Maior que o Mundo carece de algo essencial às obras que homenageia: uma estética marginal. O longa-metragem se concentra nas falas e nos personagens fracassados, porém adota uma linguagem acadêmica, limpa e quadrada demais para sujeitos tão extremos. Não é possível representar a vida à margem com os mesmos recursos de uma história de amor burguesa. No entanto, o projeto está repleto de enquadramentos centralizados, luz e direção de arte arrumados demais, trilha sonora pontuando quando rir e outros recursos típicos de uma comédia da Globo Filmes.

Aqui, Kbeto diz em voz alta o que pensa, para informar o espectador. No intuito de revelar seu caráter atrapalhado, ele cai da cadeira quando está se masturbando; cai na caçamba de lixo quando urina na rua; cai na cozinha de casa após um porre. Em outras palavras, os recursos do cinema físico são pobres, evidentes demais — assim como a presença do livreto roubado pelo autor, que surge ao lado do computador, de maneira bastante conveniente, quando o escritor pensa em começar uma obra nova. Folheando o diário por poucos segundos, o protagonista já declara a genialidade do texto.

A filmagem soa engessada, pouco orgânica. As cenas do bar são enquadradas em planos fixos, sem muita dinâmica entre os personagens. Os coadjuvantes e figurantes não sabem o que fazer enquanto os protagonistas dão sua réplica, permanecendo estáticos no fundo do enquadramento, e sugerindo um cenário mais teatral do que naturalista. Isso também vale para as festas no apartamento, ou as conversas na casa de Altair. Certo, o artifício faz parte deste cinema de excessos. No entanto, a proposta revela dificuldade de combinar o realismo da vida marginal com a rigidez da linguagem acadêmica.

Além disso, Maior que o Mundo ressalta a dificuldade de transpor para 2022 uma estética consagrada cinquenta anos atrás. As sociedades mudaram, e nossa relação com o cinema, também. Hoje, a ideia de uma sexualidade múltipla onde apenas as mulheres se relacionam entre si, mas dois homens nunca se encostam, soa problemática. O descaso pela personagem jovem que apenas se oferece para o sexo e para as drogas com qualquer um, cena após cena, sendo descartada da trama sem qualquer consequência marcante, também resulta num ato questionável.

Mesmo as piadas de um anão entrando no bar montado num sujeito de estatura comum provoca um humor anacrônico, e a “graça” de chamar a filha lésbica apenas de João, ao invés de Maria João, deixa um gosto desagradável. O que dizer da mulher negra, sempre seminua e descrita como ignorante, de fala errada? Ou dos capangas ignorantes, brutamontes e acerebrados? “Ah, mas é exatamente isso que fariam nos anos 1970! Havia cenas semelhantes nos filmes de Reichenbach, de Cardoso!”. Sem dúvida.

Entretanto, não estamos mais no tempo do cinema marginal — pelo menos, não da maneira como ele era compreendido pelos artistas da época. Esta história é contada no século XXI, ao público contemporâneo. Existe tanta ternura em relação ao cinema de antigamente quanto uma responsabilidade com as transformações históricas que nos separam deste período. Um cinema de margens, hoje, possui outros contornos, estéticas e configurações. Podemos olhar do lado de Affonso Uchôa, Gabriel Martins, André Novais Oliveira, Cláudio Assis ou Hilton Lacerda para alguns exemplos dramáticos, ou de Marcelo Caetano, Thiago B. Mendonça, Cláudia Priscilla e Kiko Goifman para exemplos dotados de humor e autocrítica.

Da maneira como foi concebida e finalizada, a comédia se assemelha a uma pequena produção de estúdio, em moldes comportados e comerciais, dentro dos quais bons atores veteranos se divertem num faz-de-conta que acene ao cinema marginal. No entanto, falta o risco, a experimentação, a liberdade de imagens, e sobretudo a compreensão do que seria a exclusão social em tempos de Bolsonaro, de censura ao audiovisual, de um cinema que navega do circuito comercial ao streaming, das telas dos cinemas aos celulares. A marginalidade, em 2022, se encontra em outros lugares. 

Maior que o Mundo (2021)
4
Nota 4/10

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