Era uma Vez um Gênio (2022)

A alucinação comportada

título original (ano)
Three Thousand Years of Longing (2022)
país
Austrália, EUA
duração
108 minutos
gênero
Fantasia, Aventura, Romance
direção
George Miller
elenco
Tilda Swinton, Idris Elba, Matteo Bocelli, Burcu Gölgedar, Nicolas Mouawad, Megan Gale, Aamito Lagum, Ece Yüksel, Erdil Yasaroglu, Lianne Mackessy
visto em
Cinemas

Há dois filmes muito distintos no interior deste projeto. Por um lado, Era uma Vez um Gênio (2022) pode ser lido como uma investigação filosófica acerca da natureza dos desejos e da criatividade humana. No centro da trama se encontra uma mulher solitária, especializada em narratologia, além de um gênio que atravessou três mil anos de histórias mundiais, incluindo reinados e impérios. Ambos possuem farto conhecimento da cultura popular e mundial — seja pelos estudos, ou por experiência empírica.

Em consequência, se aproximam e se repudiam, com um mistod de interesse e desconfiança pela esperteza alheia. Alithea (Tilda Swinton), cujo nome faz referência à deusa da verdade, domina a estrutura das fábulas a respeito de gênios concedendo três desejos àqueles que os libertam das lâmpadas. Ela menciona humanos que tentam trapacear a criatura mágica, e outros casos em que o ser sobrenatural recorre às falcatruas. Não, não vale pedir pela vida eterna, nem por pedidos infinitos, porque a magia não opera desta maneira. Desde o princípio, o texto afasta os clichês esperados do gênero.

Talvez a melhor subversão venha do ponto de vista: aqui, a professora universitária não possui desejo nenhum. Ela dispensa a mágica, algo que condenaria seu servo a um sofrimento eterno. Descobre-se, portanto, que os gênios precisam conceder desejos e cumprir suas funções para se verem dispensados da tarefa. O trabalho liberta. Em última instância, são eles os seres verdadeiramente desejantes, torcendo para que lhes peçam logo, qualquer coisa, liberando-os do calvário eterno. Quem havia pensado nos sonhos dos próprios gênios?

O roteiro encontra espaço para questionar a capacidade da ciência em refutar os mitos ou em apoiá-los; o poder simbólico das fábulas na tentativa de compreender o real; e o fato que o conhecimento e o amor nunca garantiram a felicidade. Ergue-se uma homenagem robusta à capacidade de imaginar e à transmissão de contos via oralidade — uma bela ironia, dentro de um filme de proporções consideráveis. Uma arte tecnológica, utilizando recursos computadorizados contemporâneos, explica ao espectador que as melhores histórias são aquelas contadas de pessoa a pessoa, entre indivíduos que se amam.

A combinação de premissa ambiciosa e linguagem nada ambiciosa se explica com clareza pela representação do sexo e da morte.

Por outro lado, tamanha indagação metalinguística acerca da capacidade, limitação e potência do storytelling se reveste de uma linguagem familiar, comportada até demais. George Miller, diretor capaz de uso radical de câmera, som e luz quando o deseja, prefere narrar o conto pela perspectiva de um pequeno filme familiar, de imagens fáceis, construções acadêmicas e recursos convencionais. Este é mais o George Miller de Babe, o Porquinho Atrapalhado na Cidade e Happy Feet: O Pinguim do que o George Miller de Mad Max: Estrada da Fúria

Para uma narrativa situada em sua grande parte dentro de um quarto de hotel, com Alithea e o gênio (Idris Elba) em roupões de banho, surpreende a falta de criatividade, e de ousadia, ao filmar este espaço. O local se assemelha a um estúdio qualquer, onde as conversas são registradas em plano e contraplano, com atores posicionados no centro exato da imagem, evitando interagir com o cenário e provocar qualquer efeito de dinamismo cênico. Depende-se excessivamente do diálogo para aprofundar o relacionamento entre os protagonistas.

Cada história-dentro-da-história representa um flashback do gênio, caso em que a existência de poções e magias permitiria uma viagem intricada por diferentes estilos, épocas e linguagens. Afinal, a valorização da cultura e da riqueza histórica de povos árabes e orientais, em geral, sugeriria uma adaptação dos recursos estéticos para a representação múltipla da diferença, do outro. Mero engano: o diretor trata todos os reinos e séculos como se fossem jornadas equivalentes, criadas diante do mesmo fundo verde nos quais se projetam, digitalmente, os diversos castelos, abismos e oceanos.

As escapadas da lâmpada e os retornos ao objeto são acompanhados de um fluxo de energia multicolorida, enquanto a primeira aparição do gênio, em seu formato gigantesco, revela o caráter assumidamente falso dos efeitos visuais. A magia não possui textura, peso, ou contato com o ambiente ao redor, remetendo a uma inserção digital posterior — quase uma sobreposição. Em se tratando de uma equipe tão experiente, com produtores veteranos, imagina-se que Miller tenha optado por tais recursos, em detrimento de uma construção verossímil. Em tempo de dragões impressionantes de Game of Thrones e animais parecidos com o real em Planeta dos Macacos, o criador estaria apostando na fantasia lúdica dos tempos de infância? Valorizando o faz de conta de aparência voluntariamente artificial?

De qualquer modo, a produção de US$ 60 milhões (padrão médio para Hollywood) parece muito mais barata do que poderiam sugerir seu orçamento, a presença de Tilda Swinton e Idris Elba e a direção de George Miller. Os efeitos visuais padrão CW e a sobrecarga de luzes e flashes coloridos, todos muitos semelhantes, lembram um filme da Sessão da Tarde, com tudo de bom (o aspecto acessível, afetuoso, rocambolesco) e ruim (pela ausência de complexidade) que isso pode implicar. Já a ameliepoulainização de Alithea condensa o aspecto de uma fantasia anacrônica, antiquada, já vista e explorada no imaginário romântico do cinema indie.

Talvez esta combinação de premissa ambiciosa e linguagem nada ambiciosa se explique com clareza pela representação do sexo e da morte. Era uma Vez um Gênio traz uma quantidade expressiva de cenas de nudez, embora possua carga nula de erotismo e sedução. Os corpos se desejam, mas jamais fazem sexo de fato (o Gênio apaixonado por várias mulheres é representado por um homem musculoso e sem genitálias, e os dois amantes têm os corpos transformados em fumaça na hora de consumirem o ato). Em paralelo, a sucessão de assassinatos e mortes acidentais nunca se acompanha de uma carga de sangue, tensão ou pesar pelas vítimas.

Existe certa assepsia na forma em oposição ao conteúdo visceral, ou talvez uma domesticação da linguagem para um tema relacionado aos desejos, ao sexo, à finitude. No terço final, o roteiro que havia passado mais de 30 minutos num quarto de hotel efetua diversos saltos no tempo, muda de país e de cenários, correndo rumo ao obrigatório final feliz. Ora, nada nos preparava para uma solução tão fácil, pelo contrário. Miller se apropria de uma cautionary tale para lhe retirar a precaução e a violência, preferindo um otimismo ingênuo.

Ao mesmo, o resultado se assume como escapismo. Pode-se lamentar a ausência de um mergulho nos temas abordados, entretanto, passados os primeiros dez minutos de experiência, a obra deixa clara a prioridade pela paixão dos protagonistas entre si e pela arte de fabular. A filosofia e os estudos de Alithea servem de pano de fundo para uma espécie de roda de conversa em torno da fogueira, quando um gênio de três mil anos de idade compartilha suas dores e amores com uma leitora ávida e atenta, espécie de representação do espectador ideal. Trata-se de uma fórmula modesta, porém funcional em suas singelas pretensões.

Era uma Vez um Gênio (2022)
6
Nota 6/10

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