Paloma deseja ser um filme delicado sobre uma história de violências. Neste aspecto se encontram suas maiores qualidades, seus principais desafios e também as falhas mais evidentes. O diretor Marcelo Gomes possui muito carinho pela protagonista, uma jovem transexual que efetua pequenos trabalhos braçais num vilarejo conservador, e sonha em se casar na igreja. Ela enfrenta, sem surpresas, a resistência dos religiosos e dos habitantes locais, que consideram uma afronta aos costumes o sonho íntimo da heroína.
O cineasta determina que a melhor maneira de demonstrar ternura por esta mulher reside numa linguagem poética, etérea. Por isso, investe em câmeras lentas, imagens filtradas por cortinas semitransparentes, muitos flares invadindo a imagem, repouso sobre as ondas do mar, meios-sorrisos da protagonista de olhar absorto ao horizonte. O aspecto de letargia corresponde ao imaginário de um lugar onde nada se transforma de fato, e tampouco apresenta perspectivas de mudança. O torpor serve para atenuar urgências e diluir as dores.
Por isso, ao invés de uma protagonista destemida impondo-se contra todos, ou de uma vítima sofrida (duas tendências hollywoodianas), Paloma (Kika Sena) se converte numa presença ausente, uma personagem que paira pelos espaços sem habitá-los, que transita por cenas e conflitos sem deixar traços. Há um aspecto fantasmático na mulher que se posiciona a notável distância da filha e dos familiares, sem outros objetivos a longo prazo, sem problemas financeiros pungentes. Ela possui um único desejo, apresentado desde a cena inicial: o casamento.
É interessante que o roteiro retire deste instante a perspectiva de idealização romântica. A trabalhadora de um plantio de mamão leva um relacionamento morno com o namorado, que demonstra carinho quando estão juntos, porém, manifesta evidente desconforto de ser visto com ela em locais públicos. Apesar de religiosa, a mulher não passa os dias louvando ao Senhor, nem enxergando na doutrina cristã a única maneira de se portar em sociedade. Paloma é bem resolvida com sua identidade de gênero e com sua libido, exercida em cenas de uma sexualidade liberal, despojada.
Face ao preconceito, às pressões veladas e às violências concretas, a única alternativa oferecida à heroína reside no olhar calado, sem surpresa.
No entanto, face ao preconceito, às pressões veladas e às violências concretas, a única alternativa oferecida à trabalhadora reside no olhar calado, sem surpresa. Ela não chora, não grita, não se revolta. Não extravasa através de alguma metáfora específica — e a imagem tampouco busca poesias específicas nos enquadramentos, ou fricções na montagem, para representar o contato com o mundo externo. A única escolha mais assertiva de Gomes, neste aspecto, se traduz na decisão de ocultar o rosto dos agressores, representados em voz off. Enquanto as mulheres trans possuem corpo, fala e expressões, o campo adverso se reduz ao som opressor.
A este propósito, o longa-metragem enfrenta a questão ética essencial sobre a representação do corpo trans. A protagonista é revelada na cena inicial fazendo sexo (numa filmagem discreta, escura, com meros trechos do corpo), até ser mostrada sob o chuveiro, em nudez completa e frontal. Por um lado, nota-se a maneira naturalista de revelar este corpo, sem fetichizá-lo, nem erotizá-lo. Por outro lado, cabe questionar a decisão de definir esta mulher, desde a sequência inicial, pela genitalidade e a biologia, em detrimento da identidade, que será trabalhada a seguir.
Gomes parece retirar de cena, desde o princípio, a questão do corpo, para então considerar o tópico concluído e seguir adiante. No entanto, em que medida esta curiosidade um tanto exótica a respeito do corpo alheio ainda demonstra certo paternalismo em relação aos indivíduos trans? O namorado Zé jamais tem sua nudez exposta com tamanha franqueza. Apenas o corpo de um colega homem cisgênero aparece numa gravação de celular, na forma de chacota.
Resta a pergunta pertinente aos nossos tempos: é melhor representar a nudez de uma pessoa trans, em nome de uma igualdade de direitos (caso se considere que o fato de escondê-la equivalha à transformação em tabu, algo condenável)? Ou seria melhor preservá-la, em nome de um pudor condizente com a abordagem de pretensão delicada, e com uma barreira estabelecida com a intimidade da atriz? Ou ainda, em nome de romper com esta exposição invasiva do senso comum no que diz respeito ao corpo de pessoas trans?
Corporalidades à parte, Paloma transmite esta forma de respeito e poesia que se tornou comum nas abordagens fictícias de Gomes. Ela seria uma parente distante de Verônica, interpretada por Hermila Guedes: uma mulher de uma ferocidade contida, mais silenciosa do que verbal, e com propensão a internalizar suas dores ao invés de se rebelar contra as origens das mesmas. O banho de mar, inclusive, remete à cena-chave de Era uma Vez Eu, Verônica (2012). A cena final de Paloma poderá ser interpretada como ato de coragem ou covardia, de força ou resignação, a gosto.
O filme encontra dignidade numa resistência estoica, numa tendência a sorrir face às adversidades. O motorista apaixonado por Paloma admira tristemente o horizonte, e some da história. A filha se despede da mãe, e desaparece da trama. O namorado covarde pega as roupas e parte. A única maneira de seguir em frente, neste drama, reside na fuga, no desaparecimento que implica num afastamento sem previsão de retomada. Paloma sustenta uma expressão inabalada após ter a casa depredada, e admira com um sorriso sarcástico, em silêncio, as duas mulheres que a agridem. Seria isso sinal de força, de fraqueza? De resistência?
Resta essa vontade de ver uma beleza tão clássica (flares, câmera lenta e outros recursos próximos do lugar-comum desgastado da sensibilidade) se encontrar com uma ou outra cena mais assertiva, mais grave, mais potente. De que maneira os objetos, os espaços, os pensamentos poderiam ilustrar a violência sofrida, e a psique desta mulher? Gomes adota uma abordagem impressionista, porém surpreendentemente avessa às psicologias. Paloma restará hermética, inacessível em suas decisões e dores. Conhecemos suas idas e vindas na boleia de caminhões, mas não suas hesitações. A mulher ainda é vista de fora, com tanto respeito quanto distanciamento: o que sente após a traição do noivo? Após o abandono? Depois da carta do Vaticano?
Kika Sena é uma atriz expressiva, de rosto doce e evidente força na fala. A convicção com que afronta o noivo é bastante convincente. No entanto, o texto deixa de representar um turbilhão interno que parece habitar aquele corpo e aquele coração. Existem formas de poesia na violência, assim como existiriam formas de violência na poesia. A delicadeza como meio e finalidade em si mesma pode soar como uma abordagem restrita demais para uma história que, no fundo, carrega os horrores de um Brasil transfóbico. Que os próximos projetos estrelados por mulheres trans contenham, junto do carinho (e não apesar dele), a força e o vigor e a brutalidade e o desejo e as incertezas e a complexidade de uma existência trans no Brasil atual.