A Migração Silenciosa (2023)

O garoto que não estava lá

título original (ano)
The Quiet Migration (2023)
país
Dinamarca
gênero
Drama, Fantasia
duração
103 minutos
direção
Malene Choi
elenco
Cornelius Won Riedel-Clausen, Bjarne Henriksen, Bodil Jørgensen, Camilla Bendix, Ole Boisen, Claus Flygare, Joen Hojerslev, Vigga Bro
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Esta produção dinamarquesa se abre sobre imagens plácidas da natureza. A câmera percorre um campo esverdeado onde se situa uma fazenda com vacas. A imagem se desloca gentilmente entre os animais, acompanhando a limpeza dos galpões, o funcionamento dos tratores. Há um componente não apenas de naturalismo, mas de linguagem próxima ao documental, no sentido de aproveitar a luz natural, captar interações aparentemente aleatórias à sua frente, e se impor o mínimo possível ao ambiente.

No entanto, a impressão começa a se dissipar com a chegada abrupta de elementos fantásticos. A planície verde da cena inicial é atingida por um meteoro, cujo impacto produz um buraco na terra. Retirada e polida, a rocha começa a produzir efeitos sobrenaturais na casa do jovem Carl (Cornelius Won Riedel-Clausen). Sentado à mesa do jantar, o menino nascido na Coreia do Sul, porém adotado por dinamarqueses, começa a enxergar fantasmas de uma possível mãe e uma namorada coreanas, ambas translúcidas. 

A Migração Silenciosa se orquestra no equilíbrio inesperado entre um realismo de tendência observadora e uma fantasia extravagante, assumidamente artificial. A fricção entre estilos distintos, talvez até opostos, serve à diretora Malene Choi como forma de abordar o não-pertencimento. Embora seja acolhido por pais prestativos, Carl nunca se sente confortável no país europeu. Sonha secretamente em conhecer as suas origens e encontrar a mulher que o entregou à adoção. Sente falta de amigos próximos e de colegas da mesma etnia, razão pela qual se fecha sobre si mesmo.

A Migração Silenciosa se orquestra no equilíbrio inesperado entre um realismo de tendência observadora e uma fantasia extravagante, assumidamente artificial.

A escolha do ator justifica essa composição mínima e respeitosa. Cornelius Won Riedel-Clausen se mostra um jovem ator de movimentos mínimos e timidez excessiva, do tipo que evita o olhar, baixa o rosto, retrai o corpo. O intérprete emana um desconforto real, bem aproveitado pelas câmeras. Assim, converte-se em “corpo estranho” na cidadezinha conservadora onde mora — tal qual o meteoro, vindo de lugar nenhum. A direção nunca se esforça em criar grandes momentos de intimidade com os pais. Há preocupação paterna numa elegância protocolar, que evita o toque e a expressão dos sentimentos (e talvez comum para a cultural local). Nenhum membro da família se mostra muito hábil em expor seus pensamentos e desejos.

Por isso, os acontecimentos ocorrem de modo abrupto. Avesso a dilemas explicativos e à exteriorização daquilo que pode ser intuído pelo espectador, o texto prefere sugerir elementos durante a maior parte do tempo. Quando finalmente se tornam explícitos, eles já estarão gravíssimos. Assim, um personagem revela uma doença grave somente às vésperas da cirurgia. Descobrimos a necessidade de abater um animal doente apenas quando o quadro clínico se torna insustentável. Percebemos a vontade profunda de Carl em conhecer a Coreia do Sul unicamente quando a mãe lhe sugere uma viagem de aniversário. Os conflitos se materializam às vésperas de momentos de ruptura.

A linguagem acompanha a tendência a internalizar dores, alimentando-as gradativamente até explodirem. Adota-se uma câmera fixa, de enquadramentos seguros e bem compostos, para retratar a rotina do garoto. No entanto, após uma injúria racista, a câmera reage da maneira que Carl não consegue reagir, e gira abruptamente em torno do eixo. Quanto mais o menino esconde a vontade de fugir daquele sistema, mais a estética aplica canções em hip hop dinamarquês aos campos silenciosos; ou intensifica os poderes transformadores do meteorito. A natureza onde ele imerge, o que inclui milharais e campos vazios durante a madrugada, serve para representar seu conflituoso estado de espírito.

De certo modo, Carl somatiza no cinema seus sentimentos. Existe uma generosidade simbiótica no gesto de representar, via enquadramentos, trilha sonora e demais recursos de linguagem, tudo aquilo que o rapaz introvertido não consegue elaborar sozinho. Choi opera um cinema cúmplice, empático. Ela nunca encara o personagem enquanto objeto de estudo, pelo contrário, prefere oferecer o filme para ele, movendo forças do universo (buracos abruptos, viagens pelo espaço) como forma de presente simbólico. Você não tem acolhimento real, mas tem o mundo. Não recebe acolhimento duradouro, mas guarda um meteorito no quarto. Há uma tendência carinhosa em aplacar a dor do herói por meio da fantasia.

Apesar desta cota mágica, A Migração Silenciosa nunca permite que o estranhamento rompa com a linearidade da rotina. Isso significa que os acontecimentos antinaturalistas ocorrem apenas a Carl, ou sejam desconsiderados pelos demais — vide o grande buraco no terreno, que nunca incomoda o pai. Por isso, a obra sustenta um aspecto singelo até demais, avesso a qualquer forma de catarse digna deste nome. Personagens tristes correm à distância, choram em sua cama com a câmera distante e o rosto coberto, ou ainda restam imóveis e inconsoláveis diante de um trator. Este mundo pertence aos pensativos e calados.

Deste modo, o resultado demonstra maior conforto na leitura lúdica do cotidiano do que na rara representação de conflitos. Os ataques racistas no galpão e na festa de aniversário soam fortuitos, mal elaborados em causa e consequência. Eles partem de figuras que nunca tinham recebido qualquer desenvolvimento narrativo, razão pela qual as motivações ideológicas resultam opacas, incompreensíveis. Ao invés da representação de um racismo estrutural, encontramos ataques violentos e pontuais, provindos de anônimos em situações de descontrole. O filme carece da contextualização deste pensamento na comunidade para além de uma única cena de festa repleta de línguas ferinas e reacionárias.

Mesmo assim, há belas sequências de afetos mínimos e invisíveis aos demais — ofertados, portanto, apenas a Carl e ao espectador cúmplice. A cerveja com o amigo intercambista no bar, o retorno de ambos em motocicletas à noite, e a cabeça da garota invisível repousada sobre o ombro oferecem pequenas faíscas a uma obra satisfeita com sua desafetação. Pequenos enquadramentos do rapaz estrangeiro cobrindo Carl à mesa do jantar, e do corpo deitado ao lado de um bezerro sobre o feno garantem uma forma de poesia ínfima. A Migração Silenciosa busca fazer das pequenezas sua grandiosidade, cabendo ao espectador determinar o valor e a potência desta abordagem. Uma expressividade tão sutil teria forças para permanecer na memória muito tempo após a sessão?

A Migração Silenciosa (2023)
6
Nota 6/10

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