Em Regra 34, a diretora Júlia Murat escolhe uma abordagem árida para um tema árido. Em primeiro lugar, contrapõe a liberdade de escolha individual à liberdade coletiva; ou ainda a violência íntima contra a violência social. A protagonista, Simone (Sol Miranda) representa ambos os lados: enquanto persona pública, está prestes a se formar como defensora do Estado, atuando especificamente junto a mulheres agredidas pelos companheiros. Na esfera privada, coloca o corpo à disposição dos homens em shows eróticos, onde podem escolher o que ela fará com sua nudez. Aos poucos, descobre o prazer do sadomasoquismo, submetendo-se a dores e agressões.
O roteiro poderia construir, em primeiro lugar, a simpatia do espectador pela personagem. Caso esta fosse uma obra clássica, exploraria o passado da heroína, suas relações familiares, os relacionamentos anteriores, e algum objetivo específico para o futuro, capaz de justificar as ações no presente. Ora, a jovem mulher negra jamais ganha um olhar pregresso, evitando o possível determinismo, e nunca coloca a moral à prova de alguma ambição individual a curto prazo. Esta figura vive intensamente o agora, experimentando o sexo com homens e mulheres e perseguindo os estudos sem qualquer plano traçado para a carreira. Ela aparenta nunca usufruir do dinheiro ganho com as performances na Internet, o que dispensa a leitura do enriquecimento como meta.
Logo, pode-se falar numa protagonista amoral — ao contrário de moral, ou imoral. O espectador está muito perto de sua nudez, suas sessões de autoasfixiação e das conversas com uma colega; no entanto, permanece à distância de seus pensamentos e motivações. Conforme as agressões se acentuam, somos questionados quanto à nossa adesão: você ainda fica do lado da defensora? Qual é o limite para que um jogo de experimentações sexuais se torne um mecanismo perverso de humilhação, ou desumanização? O que separa esta mulher de uma prostituta, de uma mulher agredida em casa pelo companheiro? O texto lança estas perguntas sem parar, cena após cena.
A ausência de julgamentos constitui o ponto mais perturbador de Regra 34, sobretudo por se tratar de um drama movido por temas tabus, e propenso às discussões de ordem ética, moral e religiosa.
Isso se explica pelo fato que Murat abandona o naturalismo em prol de um olhar exemplar. Ao invés de investigar as causas da objetificação da mulher, e as falhas das leis criadas para protegê-las, prefere esmiuçar sua discussão como uma pesquisadora competente e obstinada. Todas as cenas, sem exceção, discutem a autonomia feminina, enquanto a trilha sonora apresenta letras que remetem diretamente ao sexo (“Você mete tudo”) ou ao imaginário fetichizado e infantilizado da submissão (“Vem aqui / Que agora eu tô mandando / Vem meu cachorrinho / A sua dona tá chamando”). Trata-se de uma experiência monotemática, ao limite da obsessão.
O roteiro se articula em torno de três ou quatro tipos de cenas que se repetem, ciclicamente, em teor progressivamente mais grave, rumo à inevitável explosão — uma estrutura masturbatória e orgástica, digamos. Alternam-se estas sequências: as conversas intelectuais com colegas e professores; as apresentações sensuais via webcam, dentro do quarto; e os encontros com os amigos em festas e bares. O resto do mundo está ausente, e Murat possui interesse nulo em fazer com que essas esferas se cruzem. Numa produção hollywoodiana, os vídeos de Simone se masturbando seriam descobertos, ela sofreria slut shaming e teria a carreira prejudicada. Aqui, em contrapartida, os colegas de turma jamais descobrem sua atividade paralela — ou talvez o saibam, e isso não lhes cause surpresa.
A ausência de julgamentos constitui o ponto mais perturbador de Regra 34, sobretudo por se tratar de um drama movido por temas tabus, e propenso às discussões de ordem ética, moral e religiosa. Em certos aspectos, remete à peça A Mais Forte, de Strindberg, adaptada à lógica do BDSM contemporânea: quem é mais forte, entre a mulher que perfura, corta e asfixia homens e mulheres, e aquela que sofre estas ações sem reclamar? Ao pedir para ser agredida, Simone pode ser considerada dominante ou dominada? Em outros instantes, relembra o magistral Um Estranho no Lago (2013), onde um homem descobre a tendência homicida de um desconhecido, porém, fascinado pelo jogo, oferece-se como isca para ver até onde ambos podem ir.
O filme efetua um tratado acerca do consentimento e da coação, ou ainda da dificuldade de proteger terceiros (seja pela lei, pela amizade, pelo matrimônio) sem levar em consideração aquilo que estes consideram como proteção. Há confissões de mulheres espancadas que não pretendem denunciar o marido (“Ele é um homem bom”), falas gentis da amiga especializada em sadomasoquismo, buscando dar aulas sobre autoasfixiação segura; o amigo bissexual que se presta aos cortes e queimaduras como um jogo descompromissado; e a outra que foge do jogo conforme a dinâmica se agrava. O roteiro apresenta um vasto leque de reações possíveis ao tema, evitando tomar partido por qualquer um deles. A cineasta aprofunda seu discurso, elabora, destrincha, e então oferece a análise ao espectador, para que tire suas próprias conclusões — vide a lacônica cena final.
Felizmente, o longa-metragem conta com atuações excelentes, plenas de potência, ambiguidade e variação. Sol Miranda navega entre o sorriso leve e aquele tenso, quase ameaçador; Lucas Nascimento oferece uma composição infantil, imatura, ainda que parceira e disponível; enquanto Lorena Montenegro embarca num estilo mais técnico, de olhos cansados e oscilações bruscas entre a euforia e o medo. Nos papéis secundários, Georgette Fadel possui uma seriedade e um teor de afronta preciosos para combater as certezas de Simone; e alguns colegas representam os outros lados do debate, como advogados do diabo: há a colega negra que busca criminalizar a prostituição; o esquerdomacho branco cujo discurso pronto se esfacela assim que confrontado aos seus privilégios; e o professor que se refugia dos ataques dos alunos através de um verniz de ironia arrogante.
Por fim, Regra 34 soa como um filme calculado, de roteiro bastante trabalhado, com diálogos precisos, cenas de objetivos claros, e uma montagem cirúrgica. Os amantes de um cinema de poesia e respiros, de improvisos e naturalizações, podem se decepcionar com o projeto cerebral, intelectual, sem medo de enunciar, de maneira autoconsciente, todas as suas possíveis falhas, para responder às mesmas em seguida. “Caso venha me acusar de conivência com os homens abusadores, tome este argumento”, parece avisar a trama. “Caso pense que eu tolero a violência física, eis esta cena como resposta”. O resultado se divide entre uma oferta complexa de debate e um monólogo dos criadores consigo mesmos, em estilo quase hermético demais para o espectador participar.
Pelo menos, pode ser compreendido como fruto de um cinema de notáveis ambições narrativas e de linguagem, que testa seus próprios limites e capacidade de controle do real, assim como os personagens o fazem. O cinema se torna parceiro da defensoria e da advocacia quando as questões do consentimento e da confiança mútua são levados ao centro da discussão, tanto na arte quanto na constituição: assim como Simone precisa confiar na boa vontade dos amigos que a ferem, e nos pedidos agressivos que os participantes do chat erótico lhe enviam, os atores também confiam em Murat ao ponto de oferecerem sua nudez, e participarem de cenas de autoasfixiação em planos abertos e longos.
A temática da dominação e da possível oferta de si próprio ao controle de terceiros extrapola o domínio do direito e da sociedade para atingir aquele da própria arte: quem é a dominadora, entre a atriz e a diretora? Entre a montagem e o roteiro? Entre Sol Miranda e sua personagem, Simone? A cineasta teria explorado o corpo de seu elenco para a finalidade de uma obra pessoal ou, em contrapartida, seria paternalista de nossa parte tomar as dores de atores e atrizes, que podem estar muito felizes e contentes com esta abordagem? O filme permite, desta maneira, pensar em noções de hierarquia, de empatia, de compreensão da diferença, focando-se maneira explícita e brutal no corpo e na sexualidade. Neste sentido, os seus incômodos soam desejados enquanto tais, e bastante frutíferos como sementes de uma reflexão muito mais ampla do que o BDSM e as leis de proteção às mulheres agredidas.