A noite de 5 de setembro trouxe a exibição de dois novos longas-metragens em competição na 9ª Mostra de Cinema de Gostoso. A combinação de A Filha do Palhaço e Noites Alienígenas, em sessões consecutivas, constitui um gesto interessante por parte dos diretores Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld, por representarem formas totalmente distintas, quase antagônicas, de cinema. Eles ilustram, por contraste, a variedade de linguagens abraçadas pelo evento potiguar.
O cearense A Filha do Palhaço (2022) representa o cinema mais acessível e familiar já praticado por Pedro Diógenes, diretor acostumado a obras radicais e experimentais. Desta vez, ele se debruça na vida de Renato (Démick Lopes), ator que abandonou os palcos e se especializou no humor em festas e restaurantes para turistas, quando encarna a personagem Silvanelly. Ele recebe durante uma semana, em sua casa, a visita da filha adolescente, Joana, com quem mal teve contato na última década. Apesar do estranhamento, eles aprendem a conviver nos dias seguintes, enquanto a filha esconde um segredo.
Desde a primeira exibição no Cine Ceará, o filme tem se destacado pelo afeto que transborda tanto do autor com os personagens, quanto dos personagens entre si. O cineasta abraça as cenas de desconforto, mas também de cumplicidade e conciliação entre pai e filha. A composição é simples, de planos estáticos e frontais, com os atores posicionados em terços exatos da imagem, numa iniciativa que privilegia o humanismo à forma. A sessão teve lotação completa na Praia do Maceió, onde 600 espectadores, incluindo muitas famílias com crianças, assistiram ao drama.
Já o acreano Noites Alienígenas (2022) mergulha num cinema simbólico, de potência e desconforto voluntários por parte do diretor Sérgio de Carvalho. Ele efetua um retrato amplo das classes desfavorecidas entre o Acre e a Amazônia, representadas por uma dezena de personagens centrais. Isso inclui pequenos e grandes traficantes, os familiares destes, namorados e artistas, de todas as etnias e gerações. O olhar abrange a população indígena que se torna dependente das drogas trazidas do Sudeste e as milícias importadas desta mesma região do Brasil. A montagem ágil salta de um personagem ao outro, de um ponto de vista ao seguinte. Há espaço para cantos indígenas, hip hop dos artistas locais e canções de jukebox, formando um conjunto plural e inusitado.
O resultado impressiona pelo ritmo. Carvalho aparenta ter criado muitas de suas cenas enquanto filmava, no processo. Surge uma impressão rica de espontaneidade, de acaso colado ao real. Os atores estão excelentes em seus papéis — tanto aqueles mais experientes, como o inspirado Chico Diaz, quanto os novatos. A trama está repleta de cenas memoráveis, a exemplo da caminhada inicial de Paulo, do flerte de Beatriz durante uma festa, e do esplêndido encontro final, repleto de desespero e ternura, entre dois personagens com motivos suficientes para se amarem e se odiarem.
A noite também exibiu o curta-metragem Ela Mora Logo Ali (2022) de Fabiano Barros e Rafael Rogante. Eles trazem a história de uma senhora analfabeta que se apaixona pela literatura enquanto ideia, ao invés de concretização. Ao escutar a história de Dom Quixote e transmiti-la ao filho deficiente, percebe a alegria do menino com a narrativa do cavaleiro enlouquecido, e parte em busca do fim da narrativa para proporcionar alguma forma de alívio ao garoto. A trama está repleta de ternura por estes personagens, ainda que parte do afeto soe condescendente. O erro da protagonista, que se refere à obra como “Dom Caixote”, é repetido algumas vezes enquanto alívio cômico, algo que pode ser interpretado como jocoso em relação à ignorância da heroína.
No entanto, um dos grandes eventos do dia ocorreu durante o período da tarde, na recém-inaugurada Tenda Panorama da Mostra de Cinema de Gostoso. Graças à classificação etária 18 anos, motivada pelas cenas de nudez e sadomasoquismo, o drama Regra 34 (2022), de Júlia Murat, não podia ser exibido ao ar livre. Por isso, cerca de 80 espectadores descobriram na mostra paralela esta obra que venceu o prestigioso Festival de Locarno. Na trama, Simone (Sol Miranda) é uma defensora pública, especializada no combate à violência praticada contra mulheres. Em contrapartida, ela se torna cada vez mais fascinada pelos jogos sexuais de submissão.
O filme perturba o espectador menos pela sexualidade explícita do que pelos debates suscitados: devemos permanecer do lado desta mulher quando pratica atos cada vez mais agressivos contra si mesma e contra os outros? Ainda torceremos por ela quando relativiza a violência praticada por um marido contra a esposa, em virtude da nova reflexão que desenvolve a respeito da violência? A representação de corpos negros e brancos se encontra de maneira equilibrada, com mesmo grau de respeito? O projeto polêmico despertou algumas reações desfavoráveis na saída da sessão, mas parece ter afetado a todos igualmente. É difícil sair incólume desta experiência corajosa. Leia a nossa crítica.
No domingo, 6 de novembro, um longa-metragem e dois curtas-metragens serão apresentados ao público e à imprensa dentro da mostra competitiva. A partir de 21h, os espectadores descobrem A Mãe, de Cristiano Burlan; A Cabaça da Criação, de Altemir Avilis, Gil Leal e Ramon Bezerra, e Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo, de Guilherme Xavier Ribeiro.