A cena inicial deste drama revela o abuso sexual sofrido pela jovem trabalhadora de uma equipe cinematográfica. Na cena seguinte, as repórteres Jodi Kantor (Zoe Kazan) e Megan Twohey (Carey Mulligan) elaboram reportagens sobre os inúmeros abusos, estupros e assédios imputados ao então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump. A seguir, acompanham o caso de Bill O’Reilly, famoso apresentador de televisão, igualmente acusado por várias mulheres de conduta inapropriada no trabalho, sempre de natureza sexual. As protagonistas são descritas, desde o primeiro minuto, enquanto combatentes do assédio e de assediadores.
Esta perspectiva jamais se interrompe, até a última cena, mais de duas horas depois. A dupla é persistente, íntegra, obstinada, resistente a ameaças físicas e verbais. Ambas abrem mão dos cuidados com a sua família (Hollywood tem imensa dificuldade em conceber um trabalhador dedicado, capaz de administrar a vida afetiva em paralelo), dormem pouco, atendem telefonemas de madrugada, fazem pesquisas e investigações com o computador no colo, sentadas na cama. Elas são as últimas a permanecerem na redação do New York Times, quando todos os colegas foram embora. “Já são meia-noite, voltem para casa”, pede a chefe Rebecca Corbett (Patricia Clarkson). Elas ignoram, e continuam escrevendo.
Ela Disse constitui uma ode ao jornalismo investigativo da maneira mais direta, e também mais óbvia, que a indústria poderia conceber: através da hagiografia e da idealização. A chefe Rebecca também demonstra um vigor implacável, assim como o diretor Dean Basquet (Andre Braugher). Jodi e Megan representam heroínas, para além do sentido dramatúrgico do termo: elas partem numa aventura, lutam sozinhas (ou quase) contra um sistema muito maior do que si próprias, e apesar das pressões em contrário, persistem até a vitória.
Ao espectador, cabe a certeza de encontrar o exato final prometido: sabemos que elas prosperaram, que o caso Harvey Weinstein foi levado a público, e que o homem foi condenado por muitas dezenas de crimes. A suposta tensão se atenua graças à certeza do resultado, ocorrido num passado recente. O roteiro não evoca nem uma história desconhecida, nem um fato notório, porém esquecido pela distância no tempo. Pode-se questionar inclusive a decisão de narrar este episódio agora: o que o projeto teria a dizer, para além da constatação dos fatos? O que traria de novo, ou de reflexivo, para além do lembrete de que há homens perversos e criminosos, além de mulheres sofrendo violência no ambiente de trabalho?
O protagonismo reside unicamente nas jornalistas obstinadas. O roteiro se desenvolve de maneira fatual, descritiva, como se resumisse um artigo do Wikipédia.
“Mas esta história é importante, e precisa ser contada”. Uma quantidade impressionante de críticas elogiando este filme — e Spotlight, e tantos outros semelhantes — se baseia no valor do tema como legitimação da obra. Alguns temas seriam mais nobres do que outros, a partir de uma aprovação prévia, extrafilme. Em outras palavras, gosta-se do filme antes mesmo de ele existir, pelo fato de tomar partido pelo lado correto da História: as mulheres que enfrentaram o magnata estuprador, ao invés daqueles que tentaram preservá-lo no poder. Logo, filme com “tema bom” seria um filme bom. Os franceses inclusive chamam este tipo de projeto de “filme de tema”, caso em que o conteúdo se sobrepõe à forma. “É um drama meio quadrado, mas aborda uma questão essencial”, repetem inúmeros textos críticos no Brasil e em outros países.
Sim, os abusos sexuais precisam ser ditos, debatidos, lembrados. Precisam fazer parte da política, da discussão em sociedade, da História, da psicologia, da sociologia, da educação. Eles podem fazer parte da arte, é claro, e deram origem a obras contemporâneas excelentes, a exemplo de A Assistente (2019), que narra a trajetória da funcionária de Harvey Weinstein, percebendo progressivamente a conduta do chefe, ao vivo, e não em retrospecto. Neste longa-metragem, a descoberta é narrada como uma história de horror, onde o não-dito e as sugestões fora de quadro se tornam muito mais fortes do que qualquer fato mencionado. O espectador é convidado a imaginar os abusos, a supor o estado das vítimas, logo após um estupro ou assédio. Ficamos do lado das vítimas.
Aqui, as vítimas são elogiadas, porém, o protagonismo reside unicamente nas jornalistas obstinadas. O roteiro se desenvolve de maneira fatual, descritiva, como se resumisse um artigo do Wikipédia. Primeiro veio Trump, depois O’Reilly, depois a primeira investigação sobre Weinstein, e então a descoberta de mais casos… As protagonistas se limitam a correr de um lado para o outro, conversar freneticamente nos corredores, ao telefone, em jantares com possíveis fontes. As duas passam pelo menos dois terços da narrativa em ligações, discutindo o que o produtor de Hollywood teria feito, e de que modo poderiam revelar o ocorrido. Kazan e Mulligan sustentam um olhar chocado, piedoso, porém firme.
Esteticamente, Ela Disse sofre de uma pobreza atroz de recursos e de criatividade. Megan e Jodi são filmadas em planos de conjunto, estabelecendo conversas em plano e contraplano, tendo como única forma de dinamismo a fala ininterrupta enquanto caminham (Aaron Sorkin segue fazendo escola) e as chamadas pelo celular conforme atravessam avenidas repletas de pessoas em Nova York. As imagens são bege, cinzas, estáticas, observacionais. Pelo uso de nomes reais, pessoas verídicas, datas e acontecimentos verificáveis, a diretora Maria Schrader acredita estar filmando uma verdade, um documento tal qual, com uma objetividade fria de quem não deseja se intrometer, nem emitir um ponto de vista.
Por isso, o drama é desprovido de metáforas, de poesia, de cenas puramente fictícias que representem o assédio, que ilustrem o trauma das mulheres — algo que A Assistente fazia de maneira exemplar, mas que Ela Disse e O Escândalo (2019) desprezam em prol de uma proximidade com o real. Em contrapartida, os criadores apostam numa linearidade implacável, uma sucessão de acontecimentos que ignora a complexidade do ocorrido (a rede de pessoas que ocultou os crimes de Weinstein durante décadas, e os próprios casos de abuso ocorridos na redação do New York Times).
Foca-se no nascimento do #MeToo enquanto “trajetória de sucesso”, “caso que funcionou”, ignorando tantos episódios contemporâneos e simultâneos que não terminaram em prisão, nem responsabilidade judicial dos abusadores — Trump é esquecido depois dos primeiros quinze minutos. O otimismo da mensagem (“Persista apesar das dificuldades, e a verdade há de se impor mais cedo ou mais tarde”) ignora um cenário menos heroico do processo ainda dificílimo de denúncia, investigação e responsabilização de estupradores. Em outras palavras, a cineasta privilegia o “final feliz”, quando as jornalistas choram de alegria quando uma vítima aceita ter seu nome citado na matéria, e quando a matéria é, enfim, publicada.
“Deu tudo certo”, sugere a narrativa, apesar de os letreiros alarmantes, quase obrigatórios nesse tipo de projeto, lembrarem dos fatos ocorridos a seguir, e daqueles que ainda existem mundo afora. A presença de Ashley Judd, interpretando a si mesma, e de atrizes como Gwyneth Paltrow oferecendo sua voz real para uma chamada telefônica reforça o tom de gravidade buscado pela direção. “Isso realmente ocorreu”, insiste cada cena do longa-metragem, embora ninguém duvidasse de fato, dada a lembrança dos fatos recentes.
Logo, Ela Disse busca se legitimar pelos valores menos interessantes artisticamente: a minúcia da pesquisa jornalística, a proximidade do real. Ora, estas qualidades são mais requisitadas ao jornalismo e à justiça do que ao cinema de ficção. Neste contexto, é difícil julgar as atuações de Kazan e Mulligan, posto que interpretam casos exemplares, figuras acessórias que fazem perguntas e escutam respostas, ao invés de personagens com uma psicologia e uma personalidade complexas. (A depressão pós-parto de Megan é acelerada de maneira abrupta pela montagem). Elas estão presentes para perguntar e ouvir, nada mais. Ambas desempenham bem esta função, ainda que soem tão protocolares quanto a mise en scène, que prefere ilustrar as ações ao invés de representá-las imageticamente.
Isso não significa que o drama seja desprovido de cenas fortes. A tensão entre o cinismo e a confissão envolvendo Lanny Davis (Peter Friedman) rende ótimos momentos, assim como a atuação forte e repleta de nuances de Samantha Morton como Zelda Perkins. Quanto mais se afasta da dupla central, melhor a trama se torna, porque permite enfim analisar nuances, subentendidos, para além do julgamento moral e maniqueísta que domina o percurso (Megan e Jodi são boas, Harvey é um monstro; devemos torcer por elas, e contra ele). Aqui, a avalanche de planos e contraplanos reside essa dualidade básica: somos nós contra eles.
A história dos indivíduos teria sido muito mais interessante do que a história dos fatos, mas o jornalismo-espetáculo (e o crime-espetáculo) soa sedutor demais para que Hollywood se volte ao intimismo e à complexa relação de poder envolvendo estes casos. Em certa medida, Ela Disse se aproxima bastante da onda crescente e perversa de séries e filmes sobre crimes reais. Nestes casos, lembra-se que algo atroz aconteceu, e o audiovisual estima que seu papel seria apenas de saciar uma curiosidade mórbida e resgatar a memória, sem emitir um ponto de vista crítico, nem propositivo.
Aqui, a reprovação é toda direcionada a Weinstein, não ao sistema que permite a existência deste homem. Já o trauma de terceiros se converte em entretenimento para as massas, quando se determina um herói, um vilão, e fornece-se ao interlocutor, sentado confortavelmente na poltrona do cinema ou no sofá de casa, a certeza de que aquilo não ocorreu a ele, mas a outros. Um cinema de sensações, de emoções, mas de reconforto. A reflexão social e o debate político são deixados num horizonte distante.