Folhas de Outono (2023)

Pequenos amores, grandes crises

título original (ano)
Kuolleet Lehdet (2023)
país
Finlândia, Alemanha
gênero
Comédia, Romance
duração
81 minutos
direção
Aki Kaurismäki
elenco
Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Alina Tomnikov, Janne Hyytiäinen, Sherwan Haji, Martti Suosalo, Nuppu Koivu
visto em
Mostra de São Paulo 2023

É interessante pensar como, nas mãos de outros criadores, o mesmo texto de Folhas de Outono poderia resultar num filme radicalmente diferente. Talvez uma comédia pastelão, um produto Globo Filmes. Aqui, um homem e uma mulher solitários têm um encontro amoroso. Ao visitar o minúsculo apartamento dela, com pouca mobília e objetos, ela explica ter herdado o pequeno imóvel de uma tia. “Então você é uma herdeira!”, ele se exclama. Os dois assistem a um filme de zumbis, e mantêm uma expressão séria. Na saída, questionada a respeito de suas impressões, ela responde: “Eu adorei. Nunca ri tanto”.

Estas falas, e dezenas de frases semelhantes, são obviamente criadas para produzir humor — algo funcional, visto as gargalhadas na sala de cinema durante a 47ª Mostra de Cinema de São Paulo. No entanto, o diretor Aki Kaurismaki segue a cartilha que desenvolveu e refinou ao longo de décadas: ele retira das atuações o pathos, a comoção, a catarse. Os protagonistas pronunciam o texto sarcástico com um rosto impassivo, o corpo rígido. 

Podemos lembrar então dos grandes humoristas do início do cinema, que extraíam comicidade precisamente da diferença entre piadas mordazes e expressividade contida. Buster Keaton seria um ótimo exemplo, mas Chaplin será a referência citada explicitamente no texto, quando o nome do cineasta serve a batizar o cachorrinho de Ansa (Alma Pöysti). A narrativa também cria conexões engraçadas, pois inesperadas, com outras obras mais graves da história do cinema: Rocco e Seus Irmãos, Diário de um Pároco de Aldeia, Bando à Parte

A gravidade extrema dos fatos se choca com a ingenuidade dos sentimentos. Apesar das dificuldades, ou talvez por causa delas, a obra acredita num amor puro, de pessoas que desejam simplesmente estar em presença uma da outra.

Logo, a caracterização fantasista dos espaços e das atuações se contrasta com as situações realistas descritas pela narrativa. O cineasta finlandês se concentra na jornada melancólica de pessoas pobres, em empregos precários e de baixo reconhecimento. Nem Ansa, nem Holappa (Jussi Vatanen) possui familiares, ou laços duradouros com qualquer instituição e comunidade. Funcionam como elétrons livres, pulando de um pequeno emprego ao seguinte, de um pensionato a um banco de praça. Nada os prende em lugar nenhum.

Em consequência, a gravidade extrema dos fatos se choca com a ingenuidade dos sentimentos. A rádio informa exclusivamente sobre a invasão da Rússia na Ucrânia, contando os mortos e informando a respeito de bombardeios. Enquanto isso, o patrão será preso, a funcionária é demitida injustamente, o cachorro está próximo de ser sacrificado, e Holappa seria assaltado por uma gangue de adolescentes, caso trouxesse consigo algo digno de ser roubado. Neste contexto desesperançoso, o homem e a mulher se encontram, atraindo-se quase por exclusão — eles correspondem à única oferta de afeto disponível um ao outro.

Por isso, mal se tocam, raramente conversam. Trocam poucos olhares, e evitam o flerte. Mesmo assim, não conseguem parar de pensar um no outro, apesar de a narrativa jogar com a dificuldade de sustentarem um encontro amoroso — o papel com o telefone se perde, um atropelamento impede a união. As cores variadas, mas de tons pastéis; e a trilha sonora romântica se encarregam de representar a dor e a solidão que nenhum dos dois ousa verbalizar. Cabe ao mundo, kitsch e artificial, transmitir os sentimentos represados.

Folhas de Outono transmite, portanto, uma forma incomum e autoral de humor estético, através dos enquadramentos posados demais, dos rostos simetricamente parados na imagem, do sujeito que fuma sob a placa de “proibido fumar”. Rimos porque adultos comuns não costumam se comportar desta maneira, flertar assim, reagir com tamanha frieza a uma injustiça no trabalho. Divertimo-nos porque percebemos, através dos maneirismos deles, como nossos padrões também consistem em convenções. Por oposição, o comportamento estranho destas pessoas “diferentes” nos leva a pensar sobre nós mesmos, assim como fazem as boas comédias.

Além disso, Kaurismaki possui plena consciência de seu discurso. Ele jamais ridiculariza seus personagens — nem os principais, nem os coadjuvantes, aos quais se costuma deixar a tradicional função de “alívio cômico”. Engraçadas serão as situações, a exemplo do patrão que reclama do atraso de quatro minutos de Holappa, “pela terceira vez essa semana”. “Mas estamos na segunda-feira”, responde o funcionário. O funcionamento da sociedade, as desigualdades de renda e gênero são dignas de sátira, não os indivíduos que sofrem em decorrência deste sistema. Ri-se do dominador (o patrão traficante, o chefe psicorrígido no supermercado), ao invés do dominado.

Logo, apesar das dificuldades, ou talvez por causa delas, a obra acredita num amor puro, de pessoas que desejam simplesmente estar em presença uma da outra. Como recebem um convidado em casa pela primeira vez, precisam comprar um segundo prato, além de um novo par de garfo e faca. Por esta abordagem, os motivos cômicos serão igualmente tristes, pois reveladores de uma miséria. “Eu gosto de você, mas não me aguento mais”, afirma um raro diálogo. Aqui, o amor transparece um misto improvável de doçura e desespero.

Por fim, o longa-metragem nos lembra da dificuldade de ser singelo, pequeno e humanista no cinema, quando a tendência do comportamento autoral resvala na grandiloquência ou autoimportância. Folhas de Outono representa um filme pequeno, curto, de poucos personagens, esparsas reviravoltas, cenários limitados. O cineasta prefere a fotogenia dos rostos tristes, ainda que nada piedosos (belo trabalho de atuações, sobretudo de Alma Pöysti), nas idas e vindas do trem.

Assim, promove a fricção constante entre o humor e a melancolia; entre o afeto sutil e a política grotesca; entre a aproximação mínima entre duas pessoas e os acontecimentos bombásticos na Ucrânia. Ao passo que, lá fora, as pessoas se matam, se prendem e perseguem, se exploram e roubam, Kaurismaki reserva uma crença discretamente otimista na possibilidade de encontros, por mais triviais que sejam, entre os marginais perdidos pela multidão.

Folhas de Outono (2023)
8
Nota 8/10

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