20.000 Espécies de Abelhas (2023)

A menina santa

título original (ano)
20.000 Especies de Abejas
país
Espanha
gênero
Drama
duração
129 minutos
direção
Estibaliz Urresola Solaguren
elenco
Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain, Itziar Lazkano, Sara Cózar, Martxelo Rubio
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

A narrativa começa com a tensão elevada. A mãe briga com os filhos, que não querem acordar para ir à escola. Na mesma cena, ela se irrita com o marido, ao entrar no quarto. Dentro do carro, seguem discutindo. A câmera acompanha os olhares de todos, numa coreografia atenta e ágil. Concentra-se nos rostos, nas mãos, nos objetos. Há sons por todos os lados, ruídos ao redor — uma verdadeira dinâmica do caos. 20.000 Espécies de Abelhas parte deste controle do realismo social, típico das produções ibero-americanas, que encontram nas reuniões plurais e ruidosas um belo retrato da contemporaneidade.

De fato, direção, fotografia, som e montagem orquestram o ritmo de maneira muito segura, graças a uma produção polida e profissional. Em contrapartida, paira o receio que a obra se limite a mais um drama coral a respeito de famílias brigando e se amando no final, enquanto a morte pauta as tensões. Quis a programação (ou os programadores) do Festival de Berlim que Tótem, Mal Viver e este filme espanhol tivessem sessões quase consecutivas, ajudando a aproximá-los em estrutura e tom. 

Com exceção da obra portuguesa, as direções de fotografia suaram bastante nos registros em câmera na mão, do tipo que precisa estar atento a tudo em todo o lugar ao mesmo tempo, fornecendo material suficiente à montagem para equilibrar as histórias paralelas e simultâneas de meia dúzia de personagens. O cinema sul-americano, em particular, corre o risco de ficar excessivamente associado a esta estrutura — pelo menos, no que diz respeito às obras escolhidas em Cannes e Berlim. Basta pensar em Bacurau, Manto de Gemas, Alcarràs e tantos outros (todos eles vencedores de prêmios de destaque em seus respectivos festivais). 

A cineasta encontra metáforas poderosas para associar à pureza da menina trans. Os pais, tios e avós podem discutir o quanto quiserem, no entanto, a iconografia religiosa já escolheu de que lado está.

Felizmente, a obra dirigida pela espanhola Estibaliz Urresola Solaguren começa a ganhar uma identidade própria, uma força autônoma, quando se concentra numa história em particular, entre as dúzias de conflitos latentes. A câmera perscruta até encontrar seu foco na jornada de Lucía (Sofía Otero), garotinha transexual que começa a entender sua identidade de gênero. O tema é introduzido com calma, sem espetáculo, por indícios que se aprofundam ao longo dos dias. Não existe a mínima vontade de chocar, nem de provocar.

Pelo contrário, paira uma perspectiva amorosa com a menina e seus familiares. Opõem-se os pontos de vista de Ane (Patricia López Arnaiz), a mãe progressista; da avó conservadora Lita (Itziar Lazkano); da tia-avó silenciosamente parceira (Ane Gabarain). Enquanto os adultos — ou as mulheres adultas, para ser exato — brigam entre si, a direção garante que o ponto de vista nunca abandone a menina, sempre ciente do que falam sobre ela, espiando atrás da porta, ou escutando no cômodo ao lado. Partindo do caos familiar, a narrativa se acalma e se concentra, até terminar no silêncio de uma personagem só.

É certo que o roteiro abre mais caminhos do que consegue efetivamente costurar. As subtramas da apropriação de um trabalho artístico na busca por emprego, do ressentimento da avó com o marido adúltero e mesmo das abelhas ficam em segundo plano, com pouco desenvolvimento. No entanto, esta é a maneira que a mise en scène encontra de definir seus múltiplos personagens: pelo conflito central de cada um, ao invés de seus traços de personalidade ou planos para o futuro. As abelhas contribuem em especial à bela poesia do clímax, quando toda a emoção reprisada extravasa de uma vez só.

No entanto, Solaguren demonstra uma condução segura do elenco, fugindo das armadilhas da manipulação emocional do espectador e do panfletarismo explícito pela pluralidade sexual e de gênero. A questão é abordada com tamanha naturalidade que Lucía simplesmente aparece com batom no rosto, ou com as unhas pintadas, sem que precisemos enxergar o desenrolar destes atos. A menina amadurece a compreensão de si mesma de maneira quase invisível, diante dos nossos olhos. Este belo agenciamento do tempo, posicionando o espectador como cúmplice (ao invés de voyeur), desperta uma das principais belezas do drama.

A cineasta também encontra metáforas poderosas para associar à pureza da menina trans. Enquanto os adultos disputam estratégias de “correção” ou possíveis erros culturais (“Ela passa muito tempo com mulheres”, “Ela não recebeu atenção o suficiente”, “Ela está apenas confusa”), o filme permite que uma estátua religiosa, procurada ao longo de toda a trama para um evento católico, reapareça por milagre, junto a Lucía, vestida com um calção feminino. Os pais, tios e avós podem discutir o quanto quiserem, no entanto, a iconografia religiosa já escolheu de que lado está.

Em chave ampla, 20.000 Species of Bees (título internacional) discute o feminino e suas reconfigurações, por meio das três gerações de mulheres. Três formas de autonomia se contrastam a partir da arte, dos afazeres domésticos, da gestão dos afetos e dos matrimônios. A avó tolerava os desmandos do marido porque não havia a oportunidade de agir de modo diferente; a mãe controla as contas da casa de igual para igual com o marido; e talvez Lucía aponte para um futuro de abertura ainda maior. Cabe sublinhar a bela ideia de que a principal conversa da menina sobre si mesma, na conclusão, não ocorra com estas pessoas, mas com a natureza. Ela conversa com o mundo inteiro, com os insetos, a floresta e os rios, que mostram maior acolhimento do que a sociedade atual.

É verdade que o drama pode incomodar pelo uso de algumas construções desgastadas, herdeiras da noção de “bom gosto” forjada pelo circuito de arte, já vistas e exploradas mil vezes. O encerramento com o rosto fora do carro, ao vento; a trilha sonora melódica com letras remetendo à vida da garota e até a metáfora da organização social das abelhas pelo ponto de vista infantil já foram utilizadas tantas vezes que perdem o potencial de surpresa e de convite à reflexão (vide o uso recente em As Maravilhas, 2014, ou no clássico O Espírito da Colmeia, 1973). No entanto, Solaguren opta por levezes e belezas clássicas para retratar uma história de exceção. Assim, o coming of age story da menina trans adquire a mesma poesia de qualquer amadurecimento cis. Neste sentido, as escolhas soam justas. 

20.000 Espécies de Abelhas (2023)
7
Nota 7/10

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