A narrativa começa com a tensão elevada. A mãe briga com os filhos, que não querem acordar para ir à escola. Na mesma cena, ela se irrita com o marido, ao entrar no quarto. Dentro do carro, seguem discutindo. A câmera acompanha os olhares de todos, numa coreografia atenta e ágil. Concentra-se nos rostos, nas mãos, nos objetos. Há sons por todos os lados, ruídos ao redor — uma verdadeira dinâmica do caos. 20.000 Espécies de Abelhas parte deste controle do realismo social, típico das produções ibero-americanas, que encontram nas reuniões plurais e ruidosas um belo retrato da contemporaneidade.
De fato, direção, fotografia, som e montagem orquestram o ritmo de maneira muito segura, graças a uma produção polida e profissional. Em contrapartida, paira o receio que a obra se limite a mais um drama coral a respeito de famílias brigando e se amando no final, enquanto a morte pauta as tensões. Quis a programação (ou os programadores) do Festival de Berlim que Tótem, Mal Viver e este filme espanhol tivessem sessões quase consecutivas, ajudando a aproximá-los em estrutura e tom.
Com exceção da obra portuguesa, as direções de fotografia suaram bastante nos registros em câmera na mão, do tipo que precisa estar atento a tudo em todo o lugar ao mesmo tempo, fornecendo material suficiente à montagem para equilibrar as histórias paralelas e simultâneas de meia dúzia de personagens. O cinema sul-americano, em particular, corre o risco de ficar excessivamente associado a esta estrutura — pelo menos, no que diz respeito às obras escolhidas em Cannes e Berlim. Basta pensar em Bacurau, Manto de Gemas, Alcarràs e tantos outros (todos eles vencedores de prêmios de destaque em seus respectivos festivais).
A cineasta encontra metáforas poderosas para associar à pureza da menina trans. Os pais, tios e avós podem discutir o quanto quiserem, no entanto, a iconografia religiosa já escolheu de que lado está.
Felizmente, a obra dirigida pela espanhola Estibaliz Urresola Solaguren começa a ganhar uma identidade própria, uma força autônoma, quando se concentra numa história em particular, entre as dúzias de conflitos latentes. A câmera perscruta até encontrar seu foco na jornada de Lucía (Sofía Otero), garotinha transexual que começa a entender sua identidade de gênero. O tema é introduzido com calma, sem espetáculo, por indícios que se aprofundam ao longo dos dias. Não existe a mínima vontade de chocar, nem de provocar.
Pelo contrário, paira uma perspectiva amorosa com a menina e seus familiares. Opõem-se os pontos de vista de Ane (Patricia López Arnaiz), a mãe progressista; da avó conservadora Lita (Itziar Lazkano); da tia-avó silenciosamente parceira (Ane Gabarain). Enquanto os adultos — ou as mulheres adultas, para ser exato — brigam entre si, a direção garante que o ponto de vista nunca abandone a menina, sempre ciente do que falam sobre ela, espiando atrás da porta, ou escutando no cômodo ao lado. Partindo do caos familiar, a narrativa se acalma e se concentra, até terminar no silêncio de uma personagem só.
É certo que o roteiro abre mais caminhos do que consegue efetivamente costurar. As subtramas da apropriação de um trabalho artístico na busca por emprego, do ressentimento da avó com o marido adúltero e mesmo das abelhas ficam em segundo plano, com pouco desenvolvimento. No entanto, esta é a maneira que a mise en scène encontra de definir seus múltiplos personagens: pelo conflito central de cada um, ao invés de seus traços de personalidade ou planos para o futuro. As abelhas contribuem em especial à bela poesia do clímax, quando toda a emoção reprisada extravasa de uma vez só.
No entanto, Solaguren demonstra uma condução segura do elenco, fugindo das armadilhas da manipulação emocional do espectador e do panfletarismo explícito pela pluralidade sexual e de gênero. A questão é abordada com tamanha naturalidade que Lucía simplesmente aparece com batom no rosto, ou com as unhas pintadas, sem que precisemos enxergar o desenrolar destes atos. A menina amadurece a compreensão de si mesma de maneira quase invisível, diante dos nossos olhos. Este belo agenciamento do tempo, posicionando o espectador como cúmplice (ao invés de voyeur), desperta uma das principais belezas do drama.
A cineasta também encontra metáforas poderosas para associar à pureza da menina trans. Enquanto os adultos disputam estratégias de “correção” ou possíveis erros culturais (“Ela passa muito tempo com mulheres”, “Ela não recebeu atenção o suficiente”, “Ela está apenas confusa”), o filme permite que uma estátua religiosa, procurada ao longo de toda a trama para um evento católico, reapareça por milagre, junto a Lucía, vestida com um calção feminino. Os pais, tios e avós podem discutir o quanto quiserem, no entanto, a iconografia religiosa já escolheu de que lado está.
Em chave ampla, 20.000 Species of Bees (título internacional) discute o feminino e suas reconfigurações, por meio das três gerações de mulheres. Três formas de autonomia se contrastam a partir da arte, dos afazeres domésticos, da gestão dos afetos e dos matrimônios. A avó tolerava os desmandos do marido porque não havia a oportunidade de agir de modo diferente; a mãe controla as contas da casa de igual para igual com o marido; e talvez Lucía aponte para um futuro de abertura ainda maior. Cabe sublinhar a bela ideia de que a principal conversa da menina sobre si mesma, na conclusão, não ocorra com estas pessoas, mas com a natureza. Ela conversa com o mundo inteiro, com os insetos, a floresta e os rios, que mostram maior acolhimento do que a sociedade atual.
É verdade que o drama pode incomodar pelo uso de algumas construções desgastadas, herdeiras da noção de “bom gosto” forjada pelo circuito de arte, já vistas e exploradas mil vezes. O encerramento com o rosto fora do carro, ao vento; a trilha sonora melódica com letras remetendo à vida da garota e até a metáfora da organização social das abelhas pelo ponto de vista infantil já foram utilizadas tantas vezes que perdem o potencial de surpresa e de convite à reflexão (vide o uso recente em As Maravilhas, 2014, ou no clássico O Espírito da Colmeia, 1973). No entanto, Solaguren opta por levezes e belezas clássicas para retratar uma história de exceção. Assim, o coming of age story da menina trans adquire a mesma poesia de qualquer amadurecimento cis. Neste sentido, as escolhas soam justas.