Tótem (2023)

A última festa

tÍtulo original (ano)
Tótem (2023)
país
México, Dinamarca, França
Gênero
Drama
duração
95 minutos
direção
Lila Avilés
elenco
Naíma Sentíes, Monserrat Marañon, Marisol Gasé, Saori Gurza, Teresita Sánchez, Mateo García Elizondo, Juan Francisco Maldonado, Iazua Larios, Alberto Amador
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

É dia de festa na família. Chegam tias, tios, crianças, convidados. Em cada cômodo, alguém aspira o tapete, arruma os móveis, prepara bolos, arma a estrutura na parte externa. O homenageado da noite é Tona, o pai que a menina Sol deseja muito rever, embora nunca a permitam. “Ele está descansando”, insistem. A pequena lança uma pergunta à inteligência artificial no telefone celular: “Meu pai vai morrer?”, ao que o aparelho afirma não ser capaz de responder. “O mundo vai acabar?”, ela insiste — o que talvez, para a compreensão infantil, corresponda a um sinônimo da morte do pai.

Tótem organiza uma festa alegre sob fundo de tristeza, de mistério e possível finitude. O aniversariante está preso a uma cama, por motivos nunca plenamente determinados. O avô trata um câncer, mas evita a quimioterapia. As irmãs de Tona discutem tratamentos, ainda que o dinheiro esteja curto. Para que servem as festas, afinal? Para celebrar alguém, para tentar diminuir o sofrimento, disfarçar a tragédia iminente? Pelo menos dois personagens confessam que não gostariam de estar ali. Paira um aspecto de esforço, de encenação (portanto, artificial) neste esforço coletivo e claramente amoroso dos amigos e familiares.

A diretora Lila Avilés opera neste registro em que as emoções precisam ser deixadas em segundo plano, pois há muito a fazer. Ninguém tem tempo para chorar, refletir, contemplar, pois o bolo está queimando, o cabelo ainda precisa ser pintado, e a menina está preparando um show ao pai. O roteiro espertamente deixa que os sentimentos transpareçam nos gestos cotidianos, nas ínfimas interações entre pelo menos uma dúzia de personagens – além do gato, do cachorro, do peixe, dos caracóis, dos insetos. A dispersão do filme coral possibilita as diferentes interpretações de vida e morte no interior da mesma casa.

A cineasta possui amplo domínio deste foco múltiplo. Junto ao diretor de fotografia Diego Tenorio, explora cada canto da casa, cada interação entre adultos e crianças, entre humanos e bichos. Há espaço para close-ups nos cachorros que observam a limpeza espiritual dos espaços; planos de detalhe nos louva-deuses pelo jardim; inserção no desconforto do casal de amigos que chega cedo demais. A câmera busca estar atenta a tudo ao mesmo tempo, numa onipresença que poderia resultar em urgência forçada. Felizmente, a montagem permite respiros, instantes de silêncio, alternando entre o caos cômico e a tristeza da volta à realidade (vide os adultos embaralhando as sílabas ao falarem sobre quimioterapia em frente às crianças).

Tótem coloca entre parêntese um mundo desabando. Ele funciona como a fotografia tirada segundos antes do estouro da represa.

Além disso, faz questão de acenar ao mundo externo, fora do contexto excepcional de festividades. Os salários atrasados da enfermeira, o trabalho da mãe no teatro e a antiga fama de garanhão do aniversariante encontram uma maneira de impregnar a narrativa pelas frestas. Assim, os personagens se tornam tridimensionais, complexos. Enquanto isso, a câmera efetua um balé discreto entre rostos e corpos, sem chamar atenção excessiva a si própria. É preciso muita coordenação e controle para desempenhar algo que soe tão descontrolado. O realismo exige um esforço profundo, visível nesta obra.

Para o cinema latino-americano, em especial, a iniciativa pode soar pouco inovadora. Caso originalidade seja um fator determinante no julgamento, Tótem sairia prejudicado pela comparação com obras que se arriscaram em linguagens muito semelhantes, com resultados superiores — O Pântano (2001), de Lucrecia Martel, em especial, mas também Família Submersa (2018), de María Alché; Manto de Joias (2022), de Natalia López; e mesmo Benzinho (2018), de Gustavo Pizzi. Avilés não tenta fugir dos códigos do realismo social que têm definido algumas das melhores iniciativas do nosso cinema, capaz de olhar para a classe média com empatia e cumplicidade, ao invés de exotismo ou julgamento moral.

No entanto, a distinção não precisaria constituir a qualidade central do projeto, que se alicerça em atuações excepcionais e uniformes, junto a um controle espaço-temporal precioso da montagem, e uma direção de fotografia capaz de iluminar e focar diversos cômodos, texturas e objetos, em internas ou externas. Ao contrário de autores que buscam o destaque de sua própria função, a diretora mexicana se sobressai pela uniformidade do trabalho com as demais equipes artísticas. Nenhum elemento da produção se sobressai, nem positiva, nem negativamente.

A autora guarda sua única catarse para a cena final, de um teor explosivo e misterioso. Ao longo de todo o dia de preparativos, planta conflitos e acena à morte no horizonte. No entanto, evita a conclusão brutal de O Pântano, por exemplo. Ela prefere aludir a uma leitura metafísica, repleta de fogos e sons, em conjunção com o rosto expressivo de Sol, a garota de sete anos que observa tudo e se transforma no verdadeiro olhar da casa (além de cúmplice do espectador). Algo parece ter se transformado no semblante da garota, que enfim compreendeu melhor o difícil funcionamento da vida adulta — e talvez tenha percebido o desfecho que aguarda seu pai.

Restarão questionamentos recalcados, ou apenas postergados. A virtude deste cinema ao vivo, com poucos saltos temporais e narrativa comprimida ao longo de poucas horas, se encontra na capacidade de sugerir elementos que a obra não pretende esmiuçar. Há relatos de sexualidade reprimida no recinto, de homens se sentindo inferiorizados pelo controle feminino; belos encontros entre ciência e superstição; entre o progressismo da sobrinha que se recusa a limpar a casa (porque o irmãozinho dela não é obrigado a limpar) e o conservadorismo da tia que acha ser normal pedir à enfermeira para trabalhar mais, ganhando menos do que deveria. 

Tótem coloca entre parêntese um mundo desabando. Ele funciona como a fotografia tirada segundos antes do estouro da represa, quando se percebe as evidentes fissuras da construção, mas ainda não se presencia a chegada das águas. Assim, tem o potencial de reverberar com o espectador para além da sessão, quando tantos questionamentos estabelecerem conexões pessoais com o público, segundo o histórico e vivência de cada um. Talvez a obra inteira funcione como preparativo para o plano derradeiro, de poucos segundos apenas, e cujo sentido se completa apenas ao juntar as peças espalhadas até então.

Tótem (2023)
8
Nota 8/10

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