O Último Ônibus (2021)

A política da caridade

título original (ano)
The Last Bus (2021)
país
Reino Unido, Emirados Árabes Unidos
gênero
Drama
duração
86 minutos
direção
Gillies MacKinnon
elenco
Timothy Spall, Phyllis Logan, Grace Calder, Brian Pettifer, Colin McCredie, Celyn Jones, Garry Sweeney, Kevin Mains, Iain Robertson, Marianne McIvor
visto em
Cinemas

Um homem idoso decide viajar 1.300 km de ônibus. Este constitui o ponto de partida, e também de chegada, do drama: uma singularidade transformada em conquista a celebrar e noticiar com interesse. Observa-se o protagonista por um ponto de vista de exotismo, de curiosidade tragicômica: por que um sujeito desta idade passaria diversos dias no transporte público? Aquilo que soaria como uma realidade comum a tantos brasileiros se converte em jornada agridoce de descobertas — uma verdadeira aventura aos olhos do diretor Gillies MacKinnon.

Os motivos do deslocamento não tardam a aparecer. Tom (Timothy Spall) é taciturno e rabugento porque a amada esposa morreu. A filha pequena também morreu ao completar um ano, na véspera de Natal. Ele mesmo está morrendo, com um câncer em metástase. Então, o que teria a perder? O Último Ônibus elege o drama com D maiúsculo, compreendido pela somatória de intensas dores físicas e psicológicas: há muitos acidentes, muito câncer, muitos desmaios, batidas na cabeça, estadias no hospital, acidentes graves. O protagonista interessa à direção na condição de vítima.

O resto do mundo o observa com igual fetichismo: “Minha nossa, um velho que viaja!”, espantam-se todos. Ri-se com frequência do caminhar lento, da expressão carrancuda, como se a movimentação e o desejo de se abrir ao mundo fossem incompatíveis com a idade. Espera-se de um homem idoso que permaneça em casa, sentado no sofá, aguardando o fim. Tom lembra o garotinho superdotado de Magnólia, de quem se ria, com sarcasmo e tom de ridicularização, porque não se esperava de uma criança que detivesse tantos conhecimentos sobre o mundo. Por trás da pretensa homenagem ao envelhecimento, esconde-se o desprezo por quem foge ao seu “lugar social”.

A direção insiste em transformar a viagem íntima de Tom num espetáculo. […] Politicamente, o ponto de vista se revela simplório. O mundo se divide entre pessoas boas e caridosas, ou malvadas e agressoras.

Por isso, a direção insiste em transformar a viagem íntima de Tom num espetáculo regional. Não basta a satisfação do herói em retornar à cidade distante onde encontrou a mulher da sua vida. É preciso que as pessoas o filmem, criando a hashtag “herói do ônibus”, compartilhada tacitamente e com rapidez. As pessoas o amam simplesmente por existir, e por defender lésbicas, imigrantes e mulheres muçulmanas durante os deslocamentos, além de consertar motores de carros. O homem será recebido com aplausos, curtidas e memes — a forma contemporânea mais plausível, ao olhar jovem, de validação social. 

Politicamente, o ponto de vista se revela simplório. O mundo se divide entre pessoas boas e caridosas, ou malvadas e agressoras, num maniqueísmo digno de animações infantis. Para cada malvado (a ladra da maleta de Tom; o sujeito misógino e islamofóbico), há sorrisos e afagos de figuras que o abrigam (o casal com quem passa a noite, a mulher que resgata o objeto furtado). “Por que não podemos todos ser amigos?”, reflete o filme, acreditando que gentileza gera gentileza; que pequenos gestos cotidianos podem mudar o mundo, e que senhores gentis também merecem se tornar celebridades do Instagram.

Em certa medida, o projeto se filia a outras visões morais da sociedade, empregadas em Patch Adams: O Amor É Contagioso (1998), A Corrente do Bem (2000) e no recente O Pior Vizinho do Mundo (2022). Nestes casos, a vida de pessoas céticas ou deprimidas se reerguia graças à overdose de afeto oferecida por estranhos. O aperfeiçoamento do mundo se torna uma questão de esforço pessoal, uma verdadeira batalha do bem contra o mal. Não há política, organizações, questões ideológicas, motivos econômicos, históricos, sociais. Para a sociedade melhorar, basta querermos. Simples assim.

A estética acompanha este olhar de afago e atenuação das violências. Para MacKinnon, é preciso que as felicidades se transmitam em meios-sorrisos, e as tristezas, em pequenas melancolias. A direção de fotografia utiliza tons dessaturados, branco-cinza-azulados, favorecida pelos dias nublados. As imagens são contemplativas e, em virtude da tendência à romantização, aproximam-se de um eterno sonho, do qual Tom poderia acordar no final do trajeto. A trilha sonora acompanha a vasta maioria das cenas, indicando quando devemos ter esperanças, quando ter medo ou ficar tristes, caso o espectador não seja capaz de distinguir por conta própria. “O copo está meio cheio ou meio vazio?”, pergunta a letra da canção, com a sutileza de um manual de instruções.

Para uma história de amor, surpreende a frieza no retrato do amor entre Tom e a esposa Mary (Phyllis Logan). Tanto na juventude quanto na fase adulta, os dois mal se conversam, se falam, se tocam. Permanece um clima de desconforto na integralidade das cenas, como se carregassem, desde aquela época, a semente das tragédias futuras. O sexo dos amantes se aproxima de uma obrigação incômoda à dupla de aparência brigada, ou desinteressada. É difícil comprar o grande ato de amor, representado pela viagem, a partir de um matrimônio bocejante.

No papel principal, Timothy Spall recorre a uma composição particular do homem moribundo. Aos 66 anos, o ator interpreta um sujeito muito mais velho, e decide fazê-lo através de algo que poderia ser considerado uma caricatura cômica. Ele sublinha tiques com os lábios, olhares de reprovação, as costas curvadas, as falas rangidas entre os dentes. Ao invés de um homem velho, apela ao imaginário popular do velho, incorporando tantos trejeitos e maneirismos que beira a sátira. Ele representa a indefinição da obra, presa entre admirar a velhice e rir dela. Será que espectadores idosos se reconhecerão na composição clownesca?

As demais figuras se apequenam, porque insignificantes, e meros apêndices à presença de Tom. Elas surgem para ajudá-lo nas ruas, para filmá-lo, para provocá-lo ou aplaudi-lo. Nenhum personagem além do protagonista possui conflitos próprios: eles se materializam com o intuito único de orbitar ao redor do viajante. Quanto este sai de cena, deixam de existir. Nem mesmo os cenários possuem qualquer relevância — algo surpreendente para um road movie. As cidades e paisagens se tornam intercambiáveis, servindo de meros panos de fundo aos quiproquós do protagonista: ônibus quebrados duas vezes, teto do ônibus arrancado por uma ponte e outros exageros.

O resultado guarda diversas afinidades com o cinema cristão, tanto no sentido católico (a ameaça da morte para validar a vida, a importância de praticar a caridade, o eterno sentimento de culpa) quanto espírita (o amor que, apesar de morto, ainda guia os passos do protagonista; a promessa de se reunirem no céu). Músicas como Amazon Grace reforçam a vocação de um filme moral e moralista, marcado por virtudes e uma representação fantástica da bondade, merecedora de festas e aplausos. Neste caso, o sujeito branco, homem, cisgênero e heterossexual é alçado à condição de salvador das minorias social no Reino Unido. Há quem veja, no imbróglio indigesto, uma bela lição de vida.

O Último Ônibus (2021)
3
Nota 3/10

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