O 51º Festival de Gramado já apontava ao desejo de priorizar um cinema popular. A mostra competitiva começou e terminou com filmes produzidos por canais de televisão, voltados ao público amplo, em subgêneros de sucesso crescente. Angela e Mussum, o Filmis apelam à cinebiografia de personalidades imortalizadas no imaginário popular, com o acréscimo do true crime, ou história de crime real, para o primeiro. Ambos contam com sua cota de celebridades no elenco, em papéis distantes do que costumam representar, ou seja, efetuando um trabalho de composição.
As homenageadas da edição também dialogavam com filmes e séries de apelo ao grande público. Nos palcos, Ingrid Guimarães comemorou seu primeiro prêmio, visto que o humor costuma ficar distante dos festivais de cinema. Agradeceu a Paulo Cursino, roteirista de sua comédia de maior sucesso, De Pernas pro Ar, e também de Mussum, o Filmis. Alice Braga, atriz de blockbusters hollywoodianos e brasileiros (ela começou a carreira em Cidade de Deus), e Lucy Barreto, que produziu tanto Glauber Rocha quanto O Quatrilho, também refletem a escolha de Gramado em destacar o cinema que chega com mais facilidade ao espectador.
Por isso, a projeção de Mussum, O Filmis causava sensações mistas. Devemos comemorar o fato de existir uma comédia na seleção oficial, escolhida no grupo seleto de seis longas-metragens em competição, entre mais de 130 inscritos? Ou temer que estas obras estejam ocupando o lugar de projetos mais arriscados? Devemos celebrar uma história a respeito de artistas negros, realizada por um jovem cineasta negro (o ator Sílvio Guindane), ou manter certa reticência devido ao tipo de humor de Cursino e Roberto Santucci, autores de tantas obras depreciativas a respeito das classes populares?
O resultado trouxe o padrão Globo Filmes de qualidade, com tudo de bom e de ruim que isso possa implicar. Há recursos financeiros suficientes para recriar cenários, trabalhar grandes números musicais e chamar atores ótimos como Aílton Graça e Neusa Borges. Os artistas realmente cantam e dançam, o que inclui composições inspiradas de Ícaro Silva, por exemplo. Nota-se o investimento pessoal evidente da equipe e dos atores.
Por outro lado, resta a aparência de um produto televisivo. Os cenários transparecem o aspecto de estúdio; a fotografia apela à nitidez excessiva, comum ao streaming; os efeitos sonoros são limpos como se os personagens vivessem numa bolha sem ruídos; a iluminação apela aos refletores de fonte e intensidade evidentes. O choro do personagem no hospital, banhado por um contraluz demarcado e chuva artificial, vista pela janela, resume a estética kitsch, e nada sutil, da produção endinheirada.
Piores ainda são as concessões morais efetuadas a Mussum. O longa-metragem representa, em bom português, uma biografia chapa-branca. Isso significa que os criadores, 1) Desvalorizam as figuras ao redor do comediante, de modo a acentuar seus valores, caso da descrição pejorativa de Grande Otelo e Renato Aragão; 2) Desculpam o sambista por suas falhas, amenizando ao limite do irresponsável o abandono do filho e da primeira esposa. O protagonista foi divertido, talentoso, maravilhoso, inspirador. Vamos deixar os defeitos para lá.
Como resultado, a produção equivale a um fast food do cinema — chamativo, colorido, lustroso, de forte apelo enquanto marca. No entanto, desprovido de valor nutricional, e com excesso de gordura, sal, e outros elementos pouco apreciáveis. Sim, queremos ver mais diretores negros, e histórias de personalidades negras, estreladas por atores negros. Se possível, que sejam em produções mais responsáveis e ambiciosas em termos de linguagem. Mussum, O Filmis constitui um avanço em relação aos preconceituosos Um Suburbano Sortudo e Os Farofeiros, ambos escritos por Cursino. Mas a base para comparação estava bem baixa.
Os curtas-metragens que cercaram este longa não poderiam ser mais diferentes em termos de linguagem e pensamento sobre o audiovisual. Os excelentes Mãri Hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Iramari, e Cama Vazia de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet, comprovam a tendência da organização a deixar seus melhores curtas para o final. E também apontam à impressão perturbadora de descobrir dois festivais distintos numa única noite: Mussum, o Filmis e estes dois curtas não parecem existir na mesma proposta de cinema, no mesmo evento.
Cama Vazia acompanha a deterioração da saúde do pensador e cineasta Jean-Claude Bernardet. Embora o corpo definhe, a mente continua mais afiada do que nunca. Por isso, as imagens still do corpo entubado, num leito de hospital, se contrastam com a fala analítica a respeito da maneira como os hospitais e governos lucram com a dor dos indivíduos. Discute-se a indústria dos medicamentos, seguros e da saúde em geral, além da incapacidade de proporcionar ao cidadão o final de sua escolha.
Em apenas seis minutos, a narrativa levanta o tema do direito à eutanásia, ou suicídio assistido. Num sentido mais amplo, questiona a autonomia do indivíduo perante ao Estado: se não escolhemos nosso nascimento, não deveríamos, pelo menos, ter direito a uma decisão sobre nossa própria morte? A longa sequência de um leito desocupado sugere mais a respeito da morte do que qualquer imagem explicativa poderia fazer. A conclusão, com uma música tragicômica a respeito do suicídio, coroa o tom entre o sombrio e o autoirônico.
Em especial, comprova o potencial da linguagem cinematográfica enquanto criadora de significado por si própria. Na chave oposta ao tom forçosamente otimista de Mussum, o Filmis (o discurso de incentivo do personagem na conclusão beira o constrangimento), ressalta a possibilidade de nos confrontar aos problemas do real, ao invés de imaginarmos o mundo cor de rosa como ele poderia ser. Contrasta-se a filosofia à romantização, a política (vista enquanto confronto e senso crítico) ao cinema da escapatória.
Mãri Hi – A Árvore do Sonho também aparece, na última noite de mostra competitiva, para apontar a capacidade de grupos minoritários em retratarem a si próprios sem concessões de ordem estética e de discurso. Em outras palavras, é possível conjugar o valor da representatividade com o valor da pesquisa estética. Pode-se adequar a forma ao discurso. A perspectiva do cineasta Yanomami, neste caso, confere uma maneira distinta de olhar para a natureza, para a organização social e para o tema do sonho. Não basta que as minorias estejam presentes nas obras se elas não puderem expressar um ponto de vista diferente daquele praticado pela maioria.
O projeto de Morzaniel Iramari se confronta diretamente à plasticidade de látex de Mussum, o Filmis. Aqui, o digital de baixa definição se traduz em textura, em imagens móveis, tremidas, agitadas. Há cenas totalmente fora de foco, além de cenas externas com a luz estourada. O som está dissociado da imagem: enquanto se narra concepção de sonho, a câmera nos revela aspectos cotidianos da organização Yanomami. Há uma forma provocadora de olhar, de enquadrar, de romper com expectativas do bom gosto e dos cânones de roteiro e fotografia.
Assim, o curta-metragem perturba não por aquilo que nos diz (a narração possui um teor doce, conciliador), mas pela linguagem avessa às expectativas. Solicita, portanto, um espectador ativo, que busque traçar seu caminho e decifrar as cenas incomuns, ao invés de somente agradá-lo, entretê-lo, fornecer explicações. A política se encontra nas formas, na própria maneira de conceber as imagens. Para além do valor de sua existência (a raridade de produções efetuadas por povos originários), trata-se de um cinema instigante pela capacidade de oferecer novos olhares e concepções de cinema. É precisamente isso que se espera de grupos invisibilizados, uma vez empoderados e diante de oportunidades de assumir o controle do discurso: que utilizem o potencial artístico do cinema para revelar o mundo diferente daquele propagado pelas forças majoritárias.