O diretor Mohamed Ben Attia começa a trama em modo de impacto total: as três ou quatro primeiras cenas apresentam instantes de forte violência e catarse. Rafik (Majd Mastoura) entra no escritório onde trabalha, com uma barra de ferro nas mãos, e começa a quebrar os equipamentos, diante dos colegas horrorizados. Já na prisão, pula a janela do refeitório e seu corpo se esmaga no chão. Saído do local, sequestra o filho, puxando o garoto à força e correndo rua afora, enquanto professores da escola saem pelas calçadas, desesperados.
Em termos de ritmo e estrutura, os dez ou quinze primeiros minutos se assemelham a um blockbuster hollywoodiano a respeito de um pai-coragem buscando reatar, à força, com o filho. O protagonista é descrito enquanto pura pulsão e ferocidade: seu corpo pula, corre, cai, fere, voa, convulsiona. Mastoura, ator frequente nos trabalhos do cineasta, encarna a tarefa com uma intensidade maníaca. Enquanto explode por fora, sustenta um olhar sanguíneo, como se estivesse pronto para gestos ainda mais graves a qualquer momento.
Aos poucos, felizmente, a narrativa se acalma. Teria sido impossível sustentar esta corrida frenética por toda a duração. Além disso, como poderia construir personagens e desenvolver conflitos quando apela exclusivamente às sensações imediatas? O cineasta tunisiano, acostumado a dramas de contorno psicológico, retorna enfim ao terreno confortável do drama de personagens. Começamos a compreender a crise enfrentada pelo herói, assim como o medo sentido pela ex-esposa e pelos pais.
Nesta aventura, os instantes de magia são os mesmos que despertam preocupação devido ao caráter violento. Atribui-se poesia à precariedade e ao desespero.
No entanto, o longa-metragem preserva uma sugestão latente de fantasia. Pai e filho em fuga encontram um generoso pastor de ovelhas, com aparente limitação cognitiva, que abandona sua casa para segui-los. “Mas você vai deixar as suas ovelhas sozinhas?”, questiona Rafik. “Eu expliquei para o cachorro [o que fazer]”, responde o outro. E seguem viagem. Nesta aventura, os instantes de magia são os mesmos que despertam preocupação devido ao caráter violento. Atribui-se poesia à precariedade e ao desespero.
O símbolo maior deste curioso encontro de tons reside no gesto de voar. O pai promete ao filho, e a qualquer passante pelo seu caminho, que possui a capacidade de voar. Logo, joga-se de um gigantesco penhasco no intuito de provar seu dom. Espertamente, a montagem oculta a duração do salto, de modo que o espectador possa determinar por si próprio se presenciamos um instante de fantasia, ou uma (nova) tentativa de suicídio, diante de uma criança traumatizada.
A metáfora do voo será utilizada em excesso por Attia. Ela se intromete com insistência nos diálogos, ao passo que as imagens fornecem quatro cenas de salto. Depois, o possível voo se transforma em objeto de briga, chantagem, esgotamento. Talvez a potência do realismo fantástico fosse maior caso não se sublinhasse o elemento dissonante com tanta insistência, preferindo a sutileza ao espetáculo. Qualquer espectador minimamente atento antecipará o símbolo escolhido para encerrar a jornada. Os criadores parecem tão orgulhosos desta invenção que não conseguem reter o suspense, entregando-o por antecipação. O diretor estraga a festa surpresa organizada por ele mesmo.
Neste sentido, Atrás da Montanha sofre de uma curiosa indefinição de tons e ponto de vista. A ação inicial se converte num drama, e então num suspense de invasão doméstica, com possível foco no terror. Rafik, o filho e o pastor de ovelhas invadem uma casa, tomam uma nova família como reféns. Parecem acreditar tanto na própria mentira que encarnam as figuras de ladrões perigosos, em coerência à ficção inventada. Os garotos dos núcleos rico e pobre formam uma amizade enquanto os pais trocam ameaças de morte na sala ao lado. Inúmeras alternâncias de poder entre família burguesa e família simbólica desprivilegiada ocorrem neste segmento, que aparenta pertencer a um filme distinto.
Afinal, o que pretendem os criadores com este percurso? Uma das possibilidades seria a discussão acerca da saúde mental. Rafik é depressivo, maníaco, transparecendo outras psicopatologias não diagnosticadas. Na saída da sessão, o crítico e curador Eduardo Valente lembrou que a direção contrasta os dois setores devido ao poder financeiro. O homem agressivo renunciou ao tratamento (“Se você tivesse tomado os remédios, nada disso teria acontecido”, reclama a mãe do ex-detento), já a mãe de classe média demonstra a prudência de tomar ansiolíticos. Todos sofrem — sugere o embate —, ainda que lidem com a angústia de maneiras distintas.
No entanto, as origens ou manifestações dos estados emocionais são deixados em segundo plano conforme a jornada privilegia o olhar da criança e a revanche sangrenta dos reféns. Em determinados instantes, a obra prefere discutir a guerra entre famílias, com os pobres precisando aniquilar os ricos (ou vice-versa) para existir em sociedade. Caso a inserção social de ambos fosse discutida em profundidade, a leitura política se tornaria plausível. Ora, tanto Rafik quanto o núcleo burguês aparentam viver numa bolha apartada e protegida, onde nunca chegam policiais, vizinhos, familiares. Podem se matar à vontade.
Enquanto isso, as desigualdades de renda e oportunidades são flagrantes até demais. O herói transita da extrema precariedade (física, material, psicológica) ao conforto extremo, quase caricatural, da família patriarcal. Atrás das Montanhas hesita muito entre o realismo e o aspecto fabular, ocultando (até a cena final, pelo menos) a preferência por um dos dois polos. Neste contexto, Rafik funciona enquanto criador de conflitos, ao invés do tradicional herói que reage aos conflitos externos. É ele quem provoca o caos numa estrutura de aparência estável.
Ao final, resta uma produção ousada na tentativa de transitar entre tantos gêneros e registros. Para um diretor consagrado, acostumado a obras coesas, o teste dos próprios limites narrativos e estéticos constitui uma busca saudável. No entanto, as peças nem sempre funcionam, em decorrência da mão pesada para a fantasia. Ao menos, a obra é salva pela aparência elegante, típica dos “filmes de festivais”, na qual visivelmente há orçamento confortável para aproveitar as paisagens, utilizar a imagem em scope com estabilizadores de câmera, e trabalhar cenários com a luz desejada ou incorporada cena a cena. É um luxo experimentar dentro de um sistema tão confortável em termos criativos.