Atrás das Montanhas (2023)

A magia insistente

título original (ano)
Oura El Jebel (2023)
país
Tunísia, Bélgica, França, Itália, Arábia Saudita, Catar
gênero
Drama, Fantasia
duração
98 minutos
direção
Mohamed Ben Attia
elenco
Majd Mastoura, Walid Bouchhioua, Samer Bisharat, Selma Zeghidi, Helmi Dridi, Wissem Belgharek
visto em
Mostra de São Paulo 2023

O diretor Mohamed Ben Attia começa a trama em modo de impacto total: as três ou quatro primeiras cenas apresentam instantes de forte violência e catarse. Rafik (Majd Mastoura) entra no escritório onde trabalha, com uma barra de ferro nas mãos, e começa a quebrar os equipamentos, diante dos colegas horrorizados. Já na prisão, pula a janela do refeitório e seu corpo se esmaga no chão. Saído do local, sequestra o filho, puxando o garoto à força e correndo rua afora, enquanto professores da escola saem pelas calçadas, desesperados.

Em termos de ritmo e estrutura, os dez ou quinze primeiros minutos se assemelham a um blockbuster hollywoodiano a respeito de um pai-coragem buscando reatar, à força, com o filho. O protagonista é descrito enquanto pura pulsão e ferocidade: seu corpo pula, corre, cai, fere, voa, convulsiona. Mastoura, ator frequente nos trabalhos do cineasta, encarna a tarefa com uma intensidade maníaca. Enquanto explode por fora, sustenta um olhar sanguíneo, como se estivesse pronto para gestos ainda mais graves a qualquer momento.

Aos poucos, felizmente, a narrativa se acalma. Teria sido impossível sustentar esta corrida frenética por toda a duração. Além disso, como poderia construir personagens e desenvolver conflitos quando apela exclusivamente às sensações imediatas? O cineasta tunisiano, acostumado a dramas de contorno psicológico, retorna enfim ao terreno confortável do drama de personagens. Começamos a compreender a crise enfrentada pelo herói, assim como o medo sentido pela ex-esposa e pelos pais.

Nesta aventura, os instantes de magia são os mesmos que despertam preocupação devido ao caráter violento. Atribui-se poesia à precariedade e ao desespero.

No entanto, o longa-metragem preserva uma sugestão latente de fantasia. Pai e filho em fuga encontram um generoso pastor de ovelhas, com aparente limitação cognitiva, que abandona sua casa para segui-los. “Mas você vai deixar as suas ovelhas sozinhas?”, questiona Rafik. “Eu expliquei para o cachorro [o que fazer]”, responde o outro. E seguem viagem. Nesta aventura, os instantes de magia são os mesmos que despertam preocupação devido ao caráter violento. Atribui-se poesia à precariedade e ao desespero.

O símbolo maior deste curioso encontro de tons reside no gesto de voar. O pai promete ao filho, e a qualquer passante pelo seu caminho, que possui a capacidade de voar. Logo, joga-se de um gigantesco penhasco no intuito de provar seu dom. Espertamente, a montagem oculta a duração do salto, de modo que o espectador possa determinar por si próprio se presenciamos um instante de fantasia, ou uma (nova) tentativa de suicídio, diante de uma criança traumatizada.

A metáfora do voo será utilizada em excesso por Attia. Ela se intromete com insistência nos diálogos, ao passo que as imagens fornecem quatro cenas de salto. Depois, o possível voo se transforma em objeto de briga, chantagem, esgotamento. Talvez a potência do realismo fantástico fosse maior caso não se sublinhasse o elemento dissonante com tanta insistência, preferindo a sutileza ao espetáculo. Qualquer espectador minimamente atento antecipará o símbolo escolhido para encerrar a jornada. Os criadores parecem tão orgulhosos desta invenção que não conseguem reter o suspense, entregando-o por antecipação. O diretor estraga a festa surpresa organizada por ele mesmo.

Neste sentido, Atrás da Montanha sofre de uma curiosa indefinição de tons e ponto de vista. A ação inicial se converte num drama, e então num suspense de invasão doméstica, com possível foco no terror. Rafik, o filho e o pastor de ovelhas invadem uma casa, tomam uma nova família como reféns. Parecem acreditar tanto na própria mentira que encarnam as figuras de ladrões perigosos, em coerência à ficção inventada. Os garotos dos núcleos rico e pobre formam uma amizade enquanto os pais trocam ameaças de morte na sala ao lado. Inúmeras alternâncias de poder entre família burguesa e família simbólica desprivilegiada ocorrem neste segmento, que aparenta pertencer a um filme distinto.

Afinal, o que pretendem os criadores com este percurso? Uma das possibilidades seria a discussão acerca da saúde mental. Rafik é depressivo, maníaco, transparecendo outras psicopatologias não diagnosticadas. Na saída da sessão, o crítico e curador Eduardo Valente lembrou que a direção contrasta os dois setores devido ao poder financeiro. O homem agressivo renunciou ao tratamento (“Se você tivesse tomado os remédios, nada disso teria acontecido”, reclama a mãe do ex-detento), já a mãe de classe média demonstra a prudência de tomar ansiolíticos. Todos sofrem — sugere o embate —, ainda que lidem com a angústia de maneiras distintas.

No entanto, as origens ou manifestações dos estados emocionais são deixados em segundo plano conforme a jornada privilegia o olhar da criança e a revanche sangrenta dos reféns. Em determinados instantes, a obra prefere discutir a guerra entre famílias, com os pobres precisando aniquilar os ricos (ou vice-versa) para existir em sociedade. Caso a inserção social de ambos fosse discutida em profundidade, a leitura política se tornaria plausível. Ora, tanto Rafik quanto o núcleo burguês aparentam viver numa bolha apartada e protegida, onde nunca chegam policiais, vizinhos, familiares. Podem se matar à vontade.

Enquanto isso, as desigualdades de renda e oportunidades são flagrantes até demais. O herói transita da extrema precariedade (física, material, psicológica) ao conforto extremo, quase caricatural, da família patriarcal. Atrás das Montanhas hesita muito entre o realismo e o aspecto fabular, ocultando (até a cena final, pelo menos) a preferência por um dos dois polos. Neste contexto, Rafik funciona enquanto criador de conflitos, ao invés do tradicional herói que reage aos conflitos externos. É ele quem provoca o caos numa estrutura de aparência estável.

Ao final, resta uma produção ousada na tentativa de transitar entre tantos gêneros e registros. Para um diretor consagrado, acostumado a obras coesas, o teste dos próprios limites narrativos e estéticos constitui uma busca saudável. No entanto, as peças nem sempre funcionam, em decorrência da mão pesada para a fantasia. Ao menos, a obra é salva pela aparência elegante, típica dos “filmes de festivais”, na qual visivelmente há orçamento confortável para aproveitar as paisagens, utilizar a imagem em scope com estabilizadores de câmera, e trabalhar cenários com a luz desejada ou incorporada cena a cena. É um luxo experimentar dentro de um sistema tão confortável em termos criativos.

Atrás das Montanhas (2023)
6
Nota 6/10

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