Eram outros tempos, sem dúvida. O drama Inocência foi lançado em 1983, a partir de uma obra literária do Visconde de Taunay, publicada em 1872. Diante das modernizações propostas pelo cineasta Lima Barreto, que redigiu a primeira versão do roteiro e pretendia realizá-lo, Walter Lima Jr. preferiu retomar uma linguagem e um teor mais próximos do original. Assim, retornam a figura do médico viajante que se apaixona perdidamente pela filha doente de um homem autoritário. Os dois vivem um romance proibido, misturado com promessas de fuga e sonhos de felicidade eterna.
Durante o debate com o público durante o Bonito Cine Sur, o cineasta criticou a insistência em taxar a obra de “romântica”. De fato, há paixões em primeiro plano, porém, o foco se encontraria no retrato de um Brasil de convenções e valores. Em outras palavras, um mergulho nas estruturas patriarcais, na noção de “honra da família”, na filha tímida, com sua camisola branca remetendo à pureza, dormindo ao lado de um escravo mudo, encarregado de vigiar e preservar a sua virgindade.
No entanto, adotando a inevitável perspectiva de um espectador de 2023, chamam atenção justamente a diferença em relação aos nossos costumes e às transformações da linguagem cinematográfica. Em outras palavras, Inocência se torna mais interessante enquanto sintoma de uma época (ou de algumas épocas, no caso, o fim do século XIX e os anos 1980) do que de exemplar clássico e perene de cinema brasileiro. Ele nos lembra como já fomos, e o que apreciamos pouco algum tempo atrás — a obra obteve significativo sucesso de bilheteria em seu lançamento.
A obra dedicada aos romances tradicionais está marcada pelo constante desejo incestuoso, pedófilo e homoerótico.
Voluntariamente ou não, o longa-metragem com nome de uma personagem feminina prioriza o retrato de masculinidades frágeis, e mesmo do homoerotismo, latente na convivência destes machos sérios do campo. A casa onde se situa a quase integralidade da trama é composta apenas pelo patriarca, junto ao escravo de sua preferência. Todos os estrangeiros que passam pela residência ali pernoitam, e depois, permanecem por tempo indeterminado. O anfitrião nunca deixa que partam. Formam uma família simbólica, composta apenas por homens adultos e sexualizados.
A questão da sexualidade se prova fundamental à aventura. Estes sujeitos heterossexuais são obcecados pela atividade sexual um do outro, vigiando-se com um interesse ininterrupto. O pai de família quer ter consigo o médico capaz de salvar a filha, além do zoólogo (com seu assistente) que lhe traz uma carta familiar. Chega inclusive a elogiar a beleza destes homens, e insiste nas perguntas a respeito de romances com moças da região. No entanto, admira e teme estas figuras em igual medida, pois podem tirar a preciosa virgindade de sua menina.
“O senhor vai entrar no quarto da minha filha, mas como médico, e não como homem”, alerta o proprietário do casarão (Sebastião Vasconcelos) a Cirino (Edson Celulari). Depois de prometer a filha a um jovem da região — mesmo sem real pretensão de entregá-la —, os personagens explicam: “Inocência pertence a Manecão como este chapéu pertence ao senhor”. Diante da recusa da menina (Fernanda Torres) em consentir com o matrimônio, o pai ameaça: “Prefiro ver você morta do que a minha casa desonrada”.
Assim, todos os conflitos narrativos giram em torno de uma garota coadjuvante, enquanto os machos-alfa se admiram e se farejam. Dormem lado a lado para atestarem que ninguém vai ao quarto da garota; tiram a roupa na frente do outro para mergulhar no riacho; tornam-se companheiros de caça. Aquele que manifesta de maneira mais explícita o desejo pela jovem Inocência será imediatamente punido com um ataque de formigas. A obra dedicada aos romances tradicionais está marcada pelo constante desejo incestuoso, pedófilo e homoerótico.
Neste sentido, diverte por sua seriedade, e pelo emprego seríssimo de simbologias hoje consideradas desgastadas. O drama se inicia com a longa imagem de uma borboleta saindo de seu casulo (o desabrochar da sexualidade), enquanto os encontros de Cirino e Inocência ocorrem nas noites de lua cheia. De fora da casa, ele admira a única janela com luz acesa, por trás de uma árvore, sob névoa espessa, tal qual um lobisomem ou vampiro. A natureza traduz de maneira simbiótica a mistura de pulsão e ataque às normas.
De fato, encontra-se na paisagem a compreensão da psicologia humana. Walter Lima Jr. sempre foi fascinado pela natureza, não em chave ufanista, mas para sugerir que apenas em meio às árvores, aos rios e às planícies, as pessoas podem ser quem realmente são. Se a casa representa uma proteção castradora, a morte e o desejo se concretizam nas matas, longe do olhar de todos. Resta a impressão de que tudo é possível no isolamento da flora e fauna de Mato Grosso, alheia à pressão social e a qualquer busca policial. A natureza se torna tão tentadora quanto perigosa.
Aos atores, cabe encarnar a pureza ou a devassidão, em registros tão maniqueístas quanto exemplares. Estamos, afinal, num terreno próximo à fábula. Em seu primeiro papel no cinema, Fernanda Torres apresenta excelente composição da menina inocente, tão apaixonada quanto assustada com a possível reação do pai. Edson Celulari, por sua vez, compõe o galã de olhos verdes arregalados, boca entreaberta, como surpreso pelo próprio amor. Enquanto ambos ilustram a ingenuidade dos afetos, a voz da moral resultam em atuações rígidas de Sebastião Vasconcelos e Fernando Torres.
No final, este amor de perdição está condenado à morte — que outra alternativa poderia haver para quem ama demais? Diante desta imagem de pessoas que morrem por amor, o público do Bonito Cine Sur se derramou em elogios ao diretor, louvando aqueles bons tempos que não voltam mais. Estranha-se a adesão nostálgica e imediata a estas práticas violentas (opressão das mulheres, restrições da sexualidade) percebidas, quarenta anos mais tarde, enquanto idílio social. Mas talvez a fricção entre um romantismo patriarcal e nossa pós-modernidade cínica resultem no interesse central de repensar Inocência.