Inocência (1983)

A casa dos homens

título original (ano)
Inocência (1983)
país
Brasil
gênero
Drama, Romance
duração
117 minutos
direção
Walter Lima Jr.
elenco
Edson Celulari, Fernanda Torres, Sebastião Vasconcelos, Rainer Rudolph, Fernando Torres, Ricardo Zambelli, Chico Díaz, Manfredo Colassanti, Jorge Fino, Chica Xavier
visto em
1º Bonito Cine Sur (2023)

Eram outros tempos, sem dúvida. O drama Inocência foi lançado em 1983, a partir de uma obra literária do Visconde de Taunay, publicada em 1872. Diante das modernizações propostas pelo cineasta Lima Barreto, que redigiu a primeira versão do roteiro e pretendia realizá-lo, Walter Lima Jr. preferiu retomar uma linguagem e um teor mais próximos do original. Assim, retornam a figura do médico viajante que se apaixona perdidamente pela filha doente de um homem autoritário. Os dois vivem um romance proibido, misturado com promessas de fuga e sonhos de felicidade eterna.

Durante o debate com o público durante o Bonito Cine Sur, o cineasta criticou a insistência em taxar a obra de “romântica”. De fato, há paixões em primeiro plano, porém, o foco se encontraria no retrato de um Brasil de convenções e valores. Em outras palavras, um mergulho nas estruturas patriarcais, na noção de “honra da família”, na filha tímida, com sua camisola branca remetendo à pureza, dormindo ao lado de um escravo mudo, encarregado de vigiar e preservar a sua virgindade.

No entanto, adotando a inevitável perspectiva de um espectador de 2023, chamam atenção justamente a diferença em relação aos nossos costumes e às transformações da linguagem cinematográfica. Em outras palavras, Inocência se torna mais interessante enquanto sintoma de uma época (ou de algumas épocas, no caso, o fim do século XIX e os anos 1980) do que de exemplar clássico e perene de cinema brasileiro. Ele nos lembra como já fomos, e o que apreciamos pouco algum tempo atrás — a obra obteve significativo sucesso de bilheteria em seu lançamento.

A obra dedicada aos romances tradicionais está marcada pelo constante desejo incestuoso, pedófilo e homoerótico.

Voluntariamente ou não, o longa-metragem com nome de uma personagem feminina prioriza o retrato de masculinidades frágeis, e mesmo do homoerotismo, latente na convivência destes machos sérios do campo. A casa onde se situa a quase integralidade da trama é composta apenas pelo patriarca, junto ao escravo de sua preferência. Todos os estrangeiros que passam pela residência ali pernoitam, e depois, permanecem por tempo indeterminado. O anfitrião nunca deixa que partam. Formam uma família simbólica, composta apenas por homens adultos e sexualizados.

A questão da sexualidade se prova fundamental à aventura. Estes sujeitos heterossexuais são obcecados pela atividade sexual um do outro, vigiando-se com um interesse ininterrupto. O pai de família quer ter consigo o médico capaz de salvar a filha, além do zoólogo (com seu assistente) que lhe traz uma carta familiar. Chega inclusive a elogiar a beleza destes homens, e insiste nas perguntas a respeito de romances com moças da região. No entanto, admira e teme estas figuras em igual medida, pois podem tirar a preciosa virgindade de sua menina.

“O senhor vai entrar no quarto da minha filha, mas como médico, e não como homem”, alerta o proprietário do casarão (Sebastião Vasconcelos) a Cirino (Edson Celulari). Depois de prometer a filha a um jovem da região — mesmo sem real pretensão de entregá-la —, os personagens explicam: “Inocência pertence a Manecão como este chapéu pertence ao senhor”. Diante da recusa da menina (Fernanda Torres) em consentir com o matrimônio, o pai ameaça: “Prefiro ver você morta do que a minha casa desonrada”

Assim, todos os conflitos narrativos giram em torno de uma garota coadjuvante, enquanto os machos-alfa se admiram e se farejam. Dormem lado a lado para atestarem que ninguém vai ao quarto da garota; tiram a roupa na frente do outro para mergulhar no riacho; tornam-se companheiros de caça. Aquele que manifesta de maneira mais explícita o desejo pela jovem Inocência será imediatamente punido com um ataque de formigas. A obra dedicada aos romances tradicionais está marcada pelo constante desejo incestuoso, pedófilo e homoerótico.

Neste sentido, diverte por sua seriedade, e pelo emprego seríssimo de simbologias hoje consideradas desgastadas. O drama se inicia com a longa imagem de uma borboleta saindo de seu casulo (o desabrochar da sexualidade), enquanto os encontros de Cirino e Inocência ocorrem nas noites de lua cheia. De fora da casa, ele admira a única janela com luz acesa, por trás de uma árvore, sob névoa espessa, tal qual um lobisomem ou vampiro. A natureza traduz de maneira simbiótica a mistura de pulsão e ataque às normas.

De fato, encontra-se na paisagem a compreensão da psicologia humana. Walter Lima Jr. sempre foi fascinado pela natureza, não em chave ufanista, mas para sugerir que apenas em meio às árvores, aos rios e às planícies, as pessoas podem ser quem realmente são. Se a casa representa uma proteção castradora, a morte e o desejo se concretizam nas matas, longe do olhar de todos. Resta a impressão de que tudo é possível no isolamento da flora e fauna de Mato Grosso, alheia à pressão social e a qualquer busca policial. A natureza se torna tão tentadora quanto perigosa.

Aos atores, cabe encarnar a pureza ou a devassidão, em registros tão maniqueístas quanto exemplares. Estamos, afinal, num terreno próximo à fábula. Em seu primeiro papel no cinema, Fernanda Torres apresenta excelente composição da menina inocente, tão apaixonada quanto assustada com a possível reação do pai. Edson Celulari, por sua vez, compõe o galã de olhos verdes arregalados, boca entreaberta, como surpreso pelo próprio amor. Enquanto ambos ilustram a ingenuidade dos afetos, a voz da moral resultam em atuações rígidas de Sebastião Vasconcelos e Fernando Torres.

No final, este amor de perdição está condenado à morte — que outra alternativa poderia haver para quem ama demais? Diante desta imagem de pessoas que morrem por amor, o público do Bonito Cine Sur se derramou em elogios ao diretor, louvando aqueles bons tempos que não voltam mais. Estranha-se a adesão nostálgica e imediata a estas práticas violentas (opressão das mulheres, restrições da sexualidade) percebidas, quarenta anos mais tarde, enquanto idílio social. Mas talvez a fricção entre um romantismo patriarcal e nossa pós-modernidade cínica resultem no interesse central de repensar Inocência.

Inocência (1983)
7
Nota 7/10

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