O Festival de Cannes tem organizado uma edição conturbada em 2022. Mesmo para críticos internacionais que não compareceram ao evento este ano (caso do autor deste artigo), duas discussões interligadas chamaram atenção da imprensa mundial. Primeiro, o Deadline publicou uma matéria sulfurosa em 16 de maio, revelando a censura exercida pela organização do evento. Após uma entrevista com o delegado artístico Thierry Frémaux, os repórteres tiveram trechos cortados pela direção.
O motivo das proibições? Respostas em que o francês se esquiva do questionamento frequente a respeito da baixa presença de cineastas mulheres na mostra competitiva. Como de costume, Frémaux alega que Cannes apenas reflete a desigualdade estrutural, sendo isento de responsabilidade em corrigi-la. A lógica conformista soa frágil diante do alto cargo ocupado por este profissional, que poderia destacar mais obras de diretoras mulheres (e cineastas negros, árabes, africanos, latino-americanos) se assim o desejasse.
Através deste argumento, ele reforça a tese de que o monopólio europeu do evento se justifica pela qualidade fatual da produção: os títulos franceses e dos países vizinhos seriam melhores do que os produzidos no resto do mundo. Inverte-se a ordem de causa e consequência: a curadoria deixa de efetuar um recorte desejado entre milhares de obras disponíveis para se tornar refém daquelas existentes. A lógica passiva soa risível para o maior festival do mundo, passível de selecionar qualquer filme de seu interesse.
O Festival de Berlim, por exemplo, instaurou a paridade entre homens e mulheres, com ótimos resultados nos últimos cinco anos. O último vencedor, Alcarràs, foi dirigido por Carla Simón. Veneza e mesmo Cannes tiveram vencedoras femininas em suas últimas edições: Audrey Diwan com Happening, e Julia Ducournau com Titane. Kelly Reichardt, Sofia Coppola, Chloe Zao, Maïwenn, Mati Diop, e no caso do Brasil, Maria Augusta Ramos, Caru Alves de Souza, Fernanda Pessoa, Petra Costa, Anna Muylaert, Ana Luíza Azevedo e Laís Bodanzky são apenas alguns dos grandes nomes femininos que brilham nos festivais nacionais e internacionais. Em outras palavras, há ótimas opções de filmes e projetos à disposição.
Poucos dias após o caso Deadline, veio o segundo baque. Cannes organizou uma mesa redonda com o tema “O que significa ser cineasta hoje?”. Foram convidados dez homens brancos, cinco deles franceses, com idade mínima de 47 anos. A iniciativa soou como uma provocação: seria possível que nenhum organizador tenha cogitado um problema de representatividade nesta disposição desprovida de mulheres, de artistas negros? O recorte eurocêntrico, branco e masculino adquiriu a aparência de escolha deliberada.
É possível analisar estas escolhas para além do pressuposto do poder (“Fiz assim porque posso”). Cannes sempre representou, desde seu nascimento, a meca do cinema de autor. Este é o local conhecido por consagrar os nomes de Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Ingmar Bergman. Em comum, todos homens. Eles são autores de trabalhos excelentes, sem dúvida, mas não se trata disso aqui, até porque, como se sabe, há obras formidáveis dirigidas por mulheres também.
Cannes organizou uma mesa redonda com o tema “O que significa ser cineasta hoje?”. Foram convidados dez homens brancos.
“Ah, mas Claire Denis e Kelly Reichardt foram selecionadas!”. De fato. No entanto, constituem uma minoria absoluta: entre os mais de vinte títulos escolhidos anualmente para a mostra competitiva, raramente as obras de autoras mulheres ultrapassam três ou quatro filmes. Estas são as exceções que constituem a regra. Ora, este sistema deriva da política dos autores, praticada por inúmeros veículos de imprensa, por cinéfilos e, especialmente, pelo Festival de Cannes.
Cabe relembrar em que consiste o termo. A política dos autores se baseia no pressuposto de que o autor (superior a um “cineasta” ou “diretor”) seria capaz de transmitir, automaticamente, seu talento ao filme. Estima-se que o ponto de vista e a qualidade da obra constituam emanações diretas do trabalho deste maestro solitário, conhecido por imprimir a marca singular em cada trabalho, mesmo quando inserido num sistema industrial.
Nos primórdios do cinema, era fácil associar o nome de artistas como Charles Chaplin à figura do autor: afinal, ele escrevia, dirigia, produzia e estrelava os próprios filmes. Como negar que o britânico possuía controle absoluto da criação? À medida que as produções cresciam em orçamento e número de profissionais envolvidos, os “jovens turcos” da Cahiers du Cinéma precisaram reformular o conceito. O artista não precisaria mais efetuar a maior parte do trabalho, mas transmitir seus traços idiossincráticos ao resultado, apesar dos colegas que o cercavam.
Por isso, Almodóvar ficou conhecido pelas cores fortes, as músicas e a estética queer–kitsch; Godard, pelos recursos disruptivos de montagem e a explicitação do artifício; Fellini, pelo gosto do sonho e do realismo fantástico; Chabrol, pela fórmula do filme B inspirado nos formatos policiais populares. Assim, o cinéfilo, o crítico e o fã (três instâncias que se fundem pela perspectiva autoral) se incumbem de identificar a manutenção dos traços identificados como autorais e, portanto, sinônimos de qualidade. Aplaude-se o Fellini mais felliniano, o Truffaut mais truffautiano. O autor precisa ser sempre idêntico a si próprio.
O problema deste raciocínio se encontra em sua manutenção. Visto que o talento constitui um fator atemporal, dissociado do envelhecimento, um autor dotado de talento manifestaria tal qualidade até o resto de sua vida. Como o valor da obra depende deste talento transmitido geneticamente, um criador conhecido por filmes bons sempre faria filmes bons. Esqueça os tropeços eventuais, os casos flagrantes de brigas internas, as tentativas malsucedidas em gêneros distintos. O bom seria eternamente bom.
O autor precisa ser sempre idêntico a si próprio. O problema deste raciocínio se encontra em sua manutenção.
O preceito depende da crença que filmes possuem uma qualidade intrínseca, ao invés de extrínseca. Para os teóricos autorais, certas obras são boas e outras são ruins, cabendo aos olhos argutos distinguir uma da outra. Jacques Aumont, um dos maiores pensadores desta forma de crítica, defende piamente que Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, constitui o melhor filme de todos os tempos. Este não seria o preferido de Aumont, mas o melhor da história do cinema, objetivamente.
São compreensíveis os motivos pelos quais um teórico (ou um festival) aposta nesta ferramenta de retórica. Em primeiro lugar, ela valoriza automaticamente aquele que determina o valor da obra: ao afirmar que um filme seria uma obra-prima, declaro em paralelo que eu seria um indivíduo dotado de julgamento mais treinado que os demais, conseguindo detectar uma qualidade despercebida pela maioria. O mesmo vale para os festivais: quanto melhores os filmes selecionados por Cannes, melhor será o festival, tido como o primeiro a detectá-los e defendê-los. Trata-se de uma ferramenta de retrovalorização simbólica.
Em segundo lugar, o culto personalista precisa ser mantido a longo prazo, em virtude dos riscos que a contradição implicaria no status social de seus avaliadores. Caso eu abandone determinado cineasta após apoiar três ou quatro obras de seu percurso, estarei sugerindo que, na verdade, fui eu que errei ao detectar seu talento perene. Repetir nomes implica numa prova de coerência, e num reforço do próprio gosto. Ao selecionar, de imediato, qualquer trabalho dos irmãos Dardenne, por exemplo, Cannes afirma: “Está vendo como eu estava certo? Eles continuam bons”. Para além de defender autores, o evento defende a si próprio com esta estratégia.
Aos eleitos do panteão, segue o conforto de saber que, com maior ou menor risco em seus trabalhos, terão um lugar cativo para acolher suas próximas obras. Por isso, no termo política dos autores, a palavra mais importante é “política”, ao invés de “autores”. Ironicamente, quanto mais nomes são inseridos no grupo seleto (porque o festival precisa descobrir “seus” autores, caso de Xavier Dolan, por exemplo), menos espaço sobram às novidades. Afinal, o número de filmes selecionados na mostra competitiva continua sendo de aproximadamente vinte obras. Godard segue filmando, assim como Dolan. Ambos compartilharam um prêmio do júri de Cannes recentemente.
Isso nos leva à compreensão de que a política dos autores constitui, em sua essência, uma ferramenta de manutenção de status — um conceito reacionário, no sentido estrito do termo. Contra as novas formas e propostas, contra as reavaliações de trabalhos de diretores, contra os cancelamentos e proibições (vide os casos Polanski, Lars von Trier e semelhantes), sempre haverá os meus autores, meus itens de coleção, protegidos dos ventos oscilantes da história, dos fluxos sociais, das novas percepções e tendências. Réu confesso por estupro, Polanski teve oito trabalhos como diretor exibidos no Festival de Cannes. Recusá-lo agora equivaleria a assumir que, durante décadas, o crime do artista não foi considerado grave o suficiente pela organização.
A política dos autores constitui, em sua essência, uma ferramenta de manutenção de status — um conceito reacionário, no sentido estrito do termo.
Em retrospecto, os jovens turcos da Cahiers du Cinéma sempre valorizaram outros homens brancos. Varda, uma das maiores cineastas de todos os tempos, era afastada do grupo da Nouvelle Vague, assim como Jacques Demy, por suas fantasias musicais, e Chris Marker, graças a um cinema ostensivamente político. Os três pertenciam à “margem esquerda” do rio Sena, a parte mais popular da cidade, em oposição a Godard, Truffaut, Rohmer e cia, moradores da “margem direita”, onde se encontram os bairros ricos. Estes últimos não efetuavam um trabalho militante no início de suas carreiras, nem mesmo politicamente posicionado de maneira explícita — exceto por uma política da linguagem e das formas, é claro.
Quando questionados sobre as escolhas masculinas, heterossexuais, brancas, cisgênero e europeias de suas referências, estes críticos-cineastas geralmente desconversavam, ou alegavam serem apenas fruto de uma sociedade machista — assim como Frémaux. Que posso fazer eu, se existem mais filmes feitos por homens? Não se questionava o mecanismo que impedia a produção de obras por mulheres, nem sua consequente distribuição, exibição e inserção na história do cinema. Ora, nenhuma instância legitimadora do poder gosta de ser relembrada do fato que sua potência implica em exclusão. Preferem crer que alcançaram tal posto por mérito, e quanto àqueles que não chegaram lá, apesar de serem excelentes, o que dizer? Isso seria problema dos outros.
A naturalização da desigualdade se agrava com a falta de empatia, acentuada em nossos tempos. Se não sofro racismo, o racismo não existe de fato, ou então é bobagem, detalhe, mimimi. Se não sofro homofobia, então para quê ficar falando nisso? É coisa pequena, nada prioritária. Já viu quantas pessoas passam fome no mundo? Por que não falar da fome? Se não sou mulher, não compreendo porque a demanda feminina possa ser tão importante assim. As mulheres que se esforcem mais, certo? “Haveria espaço para todos”, sugerem aqueles que, ironicamente, selecionam apenas vinte filmes por ano entre mais de mil candidatos a um prestigioso festival de cinema.
Machistas detestam ser chamados de machistas, ou pensar em si mesmos como tal. A principal condição do privilegiado consiste em acreditar que ele merece ocupar o espaço social em que se encontra, explicam os sociólogos Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot. O afeto do homem branco heterossexual é destinado a outros homens heterossexuais: embora, sexualmente, deseje mulheres para sexo e procriação, são outros homens que ele admira, ama, e por quem deseja se ver cercado.
Escritores brancos reproduzem majoritariamente histórias de heróis brancos, e talvez nem sequer percebam este fator. Curadores homens e brancos tendem a valorizar obras de pessoas parecidas com eles, e que provavelmente transmitem valores semelhantes. Ao rechear a seleção de Cannes com europeus brancos e héteros, Frémaux está em certa maneira defendendo a si próprio e sua visão de mundo. Por isso, não se enxerga como parte do problema: o diretor artístico estima que “a qualidade das obras fala por si mesma”, e por acaso, a qualidade se encontra nos trabalhos de homens parecidíssimos com ele.
O compadrio e o nepotismo simbólico de festivais como Cannes transparecem a vontade ambígua de retratar a evolução do mundo, contanto que pelo ponto de vista do homem branco e europeu.
Pode-se alegar que Cannes busca frear o avanço dos tempos, as demandas crescentes de inclusão, diversidade, pluralidade de pontos de vista. “Não vou ceder ao politicamente correto”, insiste Frémaux. A frase de efeito sublinha a resistência em se questionar, em reavaliar os gostos e a própria percepção de qualidade, compreendida, desta vez, enquanto elemento extrínseco, que muda com o tempo e as sociedades. Uma obra adorada décadas atrás pode ser desprezada hoje — vide o caso do evidente teor racista em … E o Vento Levou (1939).
A política dos autores luta pela preservação de certos nomes e marcas. Entretanto, ela luta, em primeiro lugar, pela própria sobrevivência. Trata-se de um destes sistemas perversos que, uma vez implantados, tendem a se reproduzir sozinhos, mecanicamente. O compadrio e o nepotismo simbólico de festivais como Cannes transparecem a vontade ambígua de retratar a evolução do mundo (em temas como a guerra da Ucrânia, o empoderamento feminino, as comunidades desprivilegiadas nas periferias mundo afora), contanto que pelo ponto de vista do homem branco e europeu. Que o outro permaneça na condição de objeto de olhar, jamais de sujeito.
Esta ideologia denota, portanto, o medo (“fobia” seria a palavra correta) de perder o monopólio da legitimação do gosto, algo que sempre considerou sua por direito. Com a chegada de novos filhos do cinema, todos brigam pela herança dos pais-autores, e os mais velhos, conservadores e próximos das propriedades familiares se estimam mais legítimos de usufruir das propriedades. Os homens se mantêm enclausurados, brigando com uma falsa polidez aristocrática contra a abertura a vozes diferentes da sua. Esta guerra silenciosa é simbolizada pela imagem do maior festival do mundo definindo a prática da direção, em 2022, pela perspectiva exclusiva do olhar masculino, branco e eurocentrado.