Carro Rei (2021) descreve um Brasil tão próximo quanto distante dos nossos problemas atuais. Por um lado, um grupo de pessoas sucumbe a um novo líder totalitário, que reúne as massas e prega a violência, estimulada pelo medo das diferenças. Por outro lado, esta figura é representada por um carro dotado de inteligência artificial e grande capacidade de persuasão.
A narrativa é contada pelo ponto de vista de Uno (Luciano Pedro Jr.), garoto nascido dentro de um automóvel, e que sempre teve a capacidade de se comunicar com os motores. Por um lado, ele tem a tecnologia à disposição, aliando-se ao mecânico Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) e a uma estranha forasteira (Jules Elting). Por outro lado, deseja estudar a natureza e praticar a agroecologia. Os dois mundos se chocam de maneira catártica na fábula da diretora Renata Pinheiro (de Amor, Plástico e Barulho). O Meio Amargo conversou com a autora sobre o drama fantástico, que chega aos cinemas em 30 de junho:
Que papel os carros e motores desempenham neste filme?
Eles são nossos irmãos, nossos parentes. Carros, máquinas e motores são uma grande metáfora do que somos de verdade. É como um espelhamento de nós, humanos. O filme aborda uma questão bem grande: nosso futuro, e o que estamos construindo para nós mesmos enquanto humanidade. O carro e a tecnologia são a prole humana. Eles se tornaram uma extensão do corpo humano, como tentativas de potencializar a nossa existência, e nos afastar de uma existência mais natural. O homem é um animal como qualquer outro, com o diferencial de ser racional. É engraçado que essa racionalidade tenta se afastar cada vez mais da condição animal. O filme fala dessa humanidade que pretende deixar de ser natural, abraçando a artificialidade. Essa evolução talvez seja uma involução: é um caminho destruidor.
Você opõe a tecnologia à agricultura familiar e orgânica. Por que escolheu este elemento como contraponto?
Acredito que esta seja a grande questão humana, a mais clássica: natureza versus máquinas. Isso está bem atual. Temos índices absurdos de destruição da natureza, a exemplo da Floresta Amazônica, enquanto parques industriais avançam com grande velocidade. Podemos também imaginar a pandemia nisso, como fruto de nossa destruição. É uma questão ampla, que representa o caminho que estamos escolhendo tomar enquanto raça humana. O filme aborda estas questões amplas, mas localizadas no Brasil. Ele teve uma carreira internacional incrível: ganhamos até melhor roteiro num festival inglês, o Raindance. Isso prova que o filme tem uma linguagem universal, e fala de questões importantes em todo o planeta. É ótimo ter esse retorno, porque não fiz nenhuma questão de globalizar o filme. Ele é muito brasileiro, com personagens brasileiros. Visualmente, Caruaru é uma cidade nordestina, pulsante, com muitos carros. Quebramos o lugar-comum do Nordeste mais puro. Na verdade, ele é bem tecnológico e capitalista.
Você sempre filmou corpos e desejo de maneira muito forte. Como isso se expande em Carro Rei?
Vejo as coisas com bastante humanidade. Esse impulso é vida: o sexo é muito parecido com o que temos quando surge uma inspiração artística. Isso lembra a sensação de gozar na cama. Está tudo muito junto. É o lugar onde lembramos que somos animais, selvagens: toda a verdade vem ali. Eu precisei humanizar o carro, neste sentido. As máquinas hoje têm rosto, formas humanas: os designers já colocam dois olhinhos, boquinhas. Assim, criamos carisma, e nos apegamos mais aos produtos. O filme segue esse caminho: nosso Carro Rei tem um sorriso, além de dois olhos na frente e de olhos laterais, para ter perfil. Pensei nele como um corpo a mais. O sexo está muito presente nos meus filmes, porque é algo importante para a humanidade.
A distopia tem sido uma das melhores ferramentas para representar o Brasil de hoje. Penso em Bacurau, Divino Amor, Medusa. Por que a fantasia e o cinema de gênero são tão potentes para ilustrar este momento?
Talvez ela já exponha o exagero de como as coisas realmente são. O fantástico se aproxima mais da realidade do que a tentativa de mostrar o real diretamente. É a forma de exacerbar uma gramática visual, um tema específico. Ele deixa uma ferida aberta do que realmente acontece. O que tem passado no Brasil nos últimos anos é muito mais louco do que qualquer um desses filmes que você citou. O meu filme tem um caos que é fruto do que conseguimos digerir neste país louco. A distopia coloca o espectador num lugar inventado, o que deixa o corpo aberto para receber informações críticas. A gramática do cinema de gênero é preparada para despertar sensações no espectador. Você pode tocá-lo de forma sensorial, mais do que puramente racional, sem depender tanto de diálogos. A pessoa já é transportada para um universo dotado de verossimilhança, de uma realidade própria. Isso é muito rico, porque nos dá a oportunidade de falar com mais facilidade sobre problemas reais. O deslocamento da realidade nos aproxima da verdade.
O trabalho de som é fundamental em Carro Rei. Os ruídos, roncos de motor e barulhos de gozo são fundamentais, além da voz do carro. Como elaborou esta paisagem sonora?
Isso estava desde o roteiro: a ideia de que o menino falaria com o carro quando criança. Imaginei sílabas soltas, que remeteriam à linguagem humana. Mas era um motor que ele imaginava ter fala humana. Até chegar no resultado final, foi muito louco e trabalhoso. Guile Martins [editor de som] é um gênio. Com ele, quebramos tudo o que eu tinha imaginado para a voz do motor. Se você perceber, a voz é mais limpa quando ele fala com a criança, e depois que se transforma em Carro Rei, essa voz naturalmente passa por auto-falantes, por um aplicativo criado pelo Zé Macaco. Então, se torna mais sintética. É incrível a construção de um personagem que é um carro, uma máquina, mas que tem muita verdade. Ele possui corpo e voz, a partir de nossa criação coletiva, envolvendo todos os parceiros, que são grandes artistas.
Como calibrou o elenco para trabalhar entre a composição clássica e a performance?
O roteiro já tem muito desse desenho de corpo, e está impregnado de informações. Tivemos Raíssa Gregori, preparadora de elenco, que me ajudou muito. Até criamos uma história pregressa para a personagem de Jules, mas então percebemos que ela não precisava vir de lugar nenhum, nem ter gênero definido. Para ela, seria natural se apaixonar por um carro e ter relações sexuais com ele. O Zé Macaco é inspirado num mecânico que conhecemos de fato. Na pré-produção, conheci personagens muito mais loucos do que aqueles que colocamos no filme. Este Brasil é muito rico. A gente quis colocar estes personagens um pouco distorcidos da realidade dentro deste mundo fantástico, junto a outros mais realistas e dinâmicos, do lado da agroecologia. Isso traz frescor e originalidade ao filme. Não existe um único tom de interpretação. O filme passou na Coreia, e foi muito aclamado por lá. Acho interessante, porque vários filmes coreanos também não usam um tom naturalista de interpretação. A gente não queria personagens naturalistas mesmo. Um menino fala com um carro, e isso já é uma boa deixa para sair do registro 100% naturalista.
Como tem sido a experiência de lançar Carro Rei neste momento específico do audiovisual brasileiro? Foi parecido com as experiências de lançar Açúcar, ou Amor, Plástico e Barulho?
Sempre é muito difícil. Carro Rei foi lançado comercialmente em janeiro de 2022 nos Estados Unidos, e só agora chega ao Brasil. A gente passou anos sem ter um edital público de distribuição. Em Pernambuco, temos o Funcultura, um edital estadual. Ainda bem que ele não parou. Chegou a acumular duas edições, e foi prejudicado pela pandemia, mas ele persiste. Foi o Funcultura que nos permitiu lançar humildemente o filme que mereceria algo maior, na minha opinião. É claro que fazemos um filme pensando em ser visto pelo maior número de pessoas possível. Carro Rei tem bom potencial de repercutir com as plateias, até mesmo para quem gosta de um cinema mais tradicional. Ele é divertido, faz rir. Os atores estão muito bem, e Matheus é um ator consagrado, conhecido por todos. Talvez Zé Macaco seja um dos grandes personagens dele. Mas fazemos cinema independente, e sempre contamos com poucos recursos. O tempo é rei: pelo menos deixo esta obra ao público. Acredito que ele vai ter vida longa, como meu primeiro filme. Até hoje sou convidada para apresentar Amor, Plástico e Barulho.