A partir de 6 de julho, os cinemas recebem o novo drama dirigido por Clarissa Campolina (de Girimunho e Enquanto Estamos Aqui). Em Canção ao Longe, ela acompanha a trajetória de Jimena (Mônica Maria), mulher de 27 anos que vive com a mãe e a avó. O pai peruano abandonou a família há muito tempo, tornando-se um tema proibido dentro de casa. Apesar disso, nasce a vontade de se corresponder com ele por cartas.
O processo de redescoberta das raízes se torna fundamental para a saída de Jimena do ninho familiar rumo a uma vida independente pela cidade de Belo Horizonte. No caminho, ela forma novos laços, inclusive com Emílio, um pai solo que lhe mostra outras maneiras de manifestar a parentalidade, distante de sua experiência de abandono.
Em entrevista ao Meio Amargo, a cineasta e a atriz conversam sobre a construção deste drama delicado, porém observador e preciso, e sua relação com a cidade de Belo Horizonte:
Fico surpreso que este seja um filme delicado, apesar de ter metáforas pesadas, a exemplo de uma demolição e do movimento de placas tectônicas.
Mônica Maria: O filme trata de contrastes o tempo inteiro. Estar junto, mas se sentir só; o barulho de terremotos, apesar do silêncio. Todo o ruído muito forte está acontecendo dentro da cabeça dela, e conseguimos compreender estes pensamentos dela também, sem ouvi-los. Existe uma dualidade.
Clarissa Campolina: A linguagem se constrói neste contraste. Tudo aparenta estar no seu lugar, mas existe a cena inicial da demolição — que depois entendemos ser um sonho. Apesar da aparente calma, a ruína se faz necessária para as coisas realmente estarem em seu lugar. A gente vai envelhecendo e ficando com cada vez mais medo da transformação. Mas a mudança muitas vezes é necessária para a gente se encontrar. Ela nem sempre é simples — pode ser violenta também, e isso não é algo ruim em si.
Jimena perambula por diversos espaços, e não sente que pertence às suas raízes latino-americanas. Como enxergam o tema do não-pertencimento?
Mônica Maria: Engraçado você dizer que ela perambula, porque isso me parece algo recente na vida dela. É como se ela estivesse muito presa a um cotidiano no qual ela não se enxerga, com o qual não se entusiasma. Depois de um tempo, ela começa a ter a vontade de fazer novas rotas, mas é algo recente. Sobre o não-pertencimento, na hora de gravar, a gente tinha ainda mais referência do espanhol, mais imagens do pai. Elas caíram na montagem. Com o filme pronto, a Jimena não guarda muita influência da América Latina. Ela tem um casaco peruano, mas não se identifica tanto. Ela compreende o pai que fala outro idioma, mas a própria Jimena não fala espanhol. Talvez ela venha a construir essa relação num futuro, mas no filme, ela não está explícita.
Clarissa Campolina: Jimena está apartada. Ela tem desejo de conhecimento, seja no uso do casaco, que a gente constrói como um presente do pai. Tem um quadro de Machu Picchu, e algumas referências pela casa. Mas como o pai foi silenciado pela família, essa história latino-americana também foi. A origem dele foi ocultada. Ele responde em cartas de maneira genérica sobre a moral e a ordem do mundo. É isso que ela cobra: ele se tornou silenciado nas próprias cartas que escreve. A violência do silêncio no cotidiano da Jimena se contrasta com a palavra do pai. Mas muitas vezes essa palavra não supre o desejo de aproximação que ela tem dele. Ela cobra isso, embora o pai recuse também. O pertencimento também se encontra nessa falta de se reconhecer na história do pai, na raça, no silenciamento da família branca. Existe a convivência em ambientes e espaços majoritariamente brancos. Em relação à mãe, ela indaga como foi tê-la criado sozinha. Tem muitos silêncios e questões que precisam ser ditas, debatidas e reformuladas para que Jimena encontre seu lugar no mundo. Por isso a destruição inicial, para se reconstruírem as relações familiares.
O que significa para a Jimena a decisão firme de sair da casa da mãe?
Mônica Maria: A Jimena está tomando muita coragem com o tempo. Ela passou a infância, adolescência e início da vida adulta ainda muito sem se colocar no mundo de verdade, por falta de referência, e por outras faltas. Quando decide finalmente falar com a mãe, ela tira isso de dentro de si, porque já vinha fazendo esforço demais.
Clarissa Campolina: Esta história é um romance de formação tardio. Jimena já tem 27 anos, e pensou demais sobre isso. Não é mais uma jovem na dúvida se pode sair de casa, se consegue se sustentar ou não. Ela já tem uma profissão e pode sair. Talvez a questão que a faça ficar até agora seja, de um lado, a falta de entender a sua identidade e a falta de coragem de seguir sozinha, e do outro lado, o cuidado com a mãe a avó. Quando ela avisa de sua partida sem discussão, ela não pode deixar abertura para voltar atrás. Se ela não sair dali, ela não se encontra. A Mônica usa essa expressão que eu acho muito adequada à Jimena: ela precisa fazer a casa dela em si mesma. Não pode mais estar ali, para de fato ter um lar, habitar um lugar e se sentir confortável.
A personagem se envolve amorosamente com um músico, mas não é o amor romântico que traz alguma forma de acolhimento a ela — ainda bem. Este é só mais um aspecto na vida da Jimena.
Clarissa Campolina: A Jimena é uma personagem forte, e bem resolvida em muitos aspectos. Ela tem amigas, ela paquera, ela trabalha. Mas existe esta questão muito cara a ela, que vem da família. Não à toa, é um drama familiar. O Emílio vem mostrar para a Jimena outra faceta de um relacionamento entre pai e filho que ela não viveu. Ele é um pai solo, e está com a criança. Para ela, o fato de complexificar a narrativa é muito válido. Nem todos os pais vão sair de casa. Ele também é um pai negro. Ela se relaciona com outra pessoa negra, e se enxerga em outra configuração de casa e de cotidiano, diferentes dos dela. Existem alguns reflexos das relações: de quem ela se aproxima? Quem ela observa, e como observa? O olhar é muito colado à personagem.
Qual a importância de situar a história especificamente em Belo Horizonte?
Clarissa Campolina: Primeiro, é a nossa cidade! Tem muitas referências de coisas e espaços que a gente conhece na cidade. É uma relação com nossas afetividades. Ao longo da construção do roteiro, entrevistamos diversas pessoas, muitas mesmo. A Mônica contribuiu, mas antes mesmo da chegada dela ao projeto, entrevistamos pessoas que conviveram só com a mãe, e viveram em Belo Horizonte na época da Jimena. Como elas se relacionavam com a cidade? A intenção era colocar a diversidade no espaço. Existem muitos lugares onde ela pode habitar. O que o desvio de percurso da personagem nos diz sobre os caminhos que ela quer seguir? Por ser uma cidade onde a gente habita, existe a facilidade de reconhecer estes espaços, a história deles, e a diferença entre uma rua no centro e outra afastada, por exemplo. Tem desejo, tem a vontade de nos aproximar da cidade, nos relacionar com ela de outra maneira.
Mônica, como foi a experiência de participar destas entrevistas?
Mônica Maria: Primeiro, sobre o que a gente estava falando antes, acho importante lembrar que existe algo sobre Minas Gerais como um todo. Somos muito conhecidos como um povo quieto. Isso existe, e talvez o fato de tantas coisas não serem ditas dentro de casa, junto a essas pessoas tradicionais e conservadoras, esteja bem representado na família da Margô, a mãe da Jimena. Sobre as entrevistas, a Clarissa fez estes encontros durante quase dez anos, para este projeto. Não presenciei porque cheguei apenas no final do processo. Nem mergulhei nestes vídeos, porque o roteiro já chegou muito pronto para mim. Mesmo assim, conversamos bastante, com a Clarissa e a equipe, sobre esta personagem e os objetivos dela.
Clarissa, como situa Canção ao Longe na sua trajetória? Que movimento ele traça após filmes tão diferentes como Girimunho e Enquanto Estamos Aqui?
Clarissa Campolina: Me interessa muito descobrir novas formas de filmar e me relacionar com a linguagem a cada novo processo. O risco, a falta de certeza, nos coloca em movimento. Podemos errar feio, mas é preciso abraçar inclusive a possibilidade de não dar certo. É preciso entender que estamos nos jogando num risco. Este filme é diferente, mas todo esse percurso e esse tempo de cinema nos dão maturidade, até para aceitar esses riscos, num caminho novo. Mesmo assim, certos gestos persistem desde o Trecho (curta-metragem, 2006). Se você parar para pensar, esse lugar do pertencimento, de encontrar uma casa, está no Trecho, está no Girimunho. A Bastu se entende depois da morte do marido: quem ela é, como ela segue? No Enquanto Estamos Aqui, são dois personagens estrangeiros que começam a se relacionar. Eles têm que se separar, mas estão em busca desse lugar para chamar de casa.
O Canção também tem isso. O Fera, meu próximo filme, já filmado, em direção dividida com o Sérgio Borges, também traz isso. A linguagem muda, mas existem questões que nenhum dos filmes responde — acho que vou continuar sem responder! — para eu continuar pensando a respeito. Os filmes que mais me movem são aqueles que fazem perguntas, mas não trazem respostas. Quais são todos os lugares possíveis onde podemos habitar? As camadas vão sendo acrescentadas a cada novo projeto. Mas permanece o lugar da observação, onde a sensação do som e da imagem importam. O Canção ao Longe é mais narrativo do que Enquanto Estamos Aqui, que segue para o lado mais ensaístico. Mesmo assim, ele não abre mão do aspecto sensorial que a imagem e o som podem construir enquanto narrativa.